Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte III)


Quando Ayalal piscou os olhos, a trágica imagem da morte de Lysa recuou do primeiro plano da sua mente, para ficar a rondar-lhe a memória, ameaçando atacá-lo a qualquer instante. A gruta voltara a estar diante de si, no entanto a posição do rapaz havia-se alterado em relação à do local: já não estava de pé. O peito e o maxilar inferior doíam-lhe da queda que dera, e o queixo ardia-lhe onde a pedra o esfolara. Apesar disso, a dor era o menos. Devagar, o seu corpo era arrastado para trás, por um pé. Puxou-o, ao mesmo tempo que levantava a cabeça para espreitar por cima do ombro.

O que parecia ser um tentáculo enrolara-se num dos seus tornozelos. Viu a ponta contorcer-se, sentiu a pressão que fazia, face ao seu puxão. O coração começou a bater mais depressa, enquanto o olhar seguia o tentáculo pela escuridão, até uma das enormes colunas de pedra. A criança semicerrou os olhos, perscrutando com mais atenção. A coluna moveu-se e dobrou-se um pouco, revelando não estar presa ao tecto.

Há medida que Ay se aproximava, apercebeu-se da armadilha em que caíra. O que pensara serem espigões escavados na pedra eram, na verdade, dedos e ossos que brotavam de forma aleatória de várias zonas da criatura. Os membros, antes disfarçados pelas sombras, retorceram-se, formando ângulos impossíveis, como se alguém os tivesse partido e recolocado sem ter a mínima noção da forma que deveriam ter, nem da zona onde se inseriam. Fitando-o, dois olhos esféricos piscaram, dessincronizados – um encontrava-se na zona superior do corpo, outro quase ao nível do solo. No espaço que separava os orbes, a superfície contorceu-se e abriu-se numa boca de fundo negro, cada mandíbula ameaçando-o com uma série irregular de dentes afiados.

Um grito de pânico encheu-lhe a garganta, perante tamanha monstruosidade, e Ayalal tentou puxar a perna num movimento frenético. No entanto, ou a força lhe havia fugido, ou a constrição era demasiado forte. Tentou agarrar-se ao chão, mas foi em vão. Os dedos derraparam, as unhas raspando nas irregularidades da pedra. Uma delas soltou-se e Ay agarrou-a por instinto. Rodou sobre si num movimento rápido, impulsionado pelo pavor, e atirou a pedra à criatura. Acertou-lhe, porém o monstro nem sequer reagiu, deixando o projéctil cair e ressaltar duas vezes no chão. Um arquejar gutural libertou-se da boca dele, e este dobrou-se mais, em direcção aos pés do rapaz. Ayalal sentiu um bafo grotesco a carne podre, e um fio de saliva pendeu da língua que se estendia na sua direcção.

Porém, a criatura deteve-se. O olho superior piscou duas vezes, fitando alguma coisa acima da cabeça de Ayalal. De súbito, um traço de luz esbranquiçada cortou o espaço ao lado da criança, erguendo-lhe os cabelos com a energia pura que continha. A criatura deixou escapar um grito estrangulado, talvez de surpresa, e ainda se contorceu numa tentativa de escapar ao impacto, arrastando Ayalal com brusquidão para o lado contrário ao da luz, embatendo com ele na parede. O rapaz semicerrou os olhos e piscou as pálpebras, algo atordoado não só pelo choque, como também pela explosão de luz, seguida de uma torrente de faíscas a saltar em todas as direcções quando a descarga embateu no corpo do monstro. Um forte cheiro a queimado tomou o ar em redor.

Adarghins i zadiran.

Ayalal reconheceu de imediato o tom duro e álgido da voz. Embora não compreendesse o que fora dito, as palavras soaram-lhe a uma ordem que não admitiria desobediência. Olhou para o caminho que pensara seguir antes mesmo de ser capturado, e arregalou os olhos. Yudarh pairava a cerca de dois ou três palmos do chão, para lá do piso plano, por cima da zona que descia a pique. Numa das mãos empunhava o bastão, apontando-o à criatura. A sua expressão, de olhar cortante e cantos dos lábios descaídos, prometia tudo menos compaixão.

*

Sem comentários:

Enviar um comentário