Mosteiro das Sete Formas, 22 de Neth de 4592 AR (parte I)


Ay acordou com um estremecimento. Abriu os olhos e ergueu um pouco a cabeça para olhar em volta. Continuava deitado no chão, ao lado de Lysa. Alguém se dera ao trabalho de o tapar com uma coberta pesada, a qual o aquecera durante as horas que haviam passado. Ainda se sentia cansado e de membros doridos, mas a mente pesava-lhe muito menos. Olhou para a amiga, deitada ao seu lado e estendeu a mão para lhe tocar a fronte. Pelo menos a febre parecia ter desaparecido por completo. O rosto descontraído levava-o a crer que o sono era pacífico, livre da maior parte das dores e pesadelos.

Baixou a mão e olhou para além de Lysa. Com passos silenciosos, Hendran movimentava-se entre os órfãos, mudando panos molhados, verificando o seu estado de saúde e se precisavam de outro tipo de atenção. Não havia sinal nem de Yudarh nem da Directora Drane. O rapaz observou as velas, tentando perceber pelo seu tamanho quanto tempo poderia ter passado – não passavam de pequenos cotos cujo pavio ameaçava apagar-se daí a não muito tempo.

Ergueu-se com cuidado e fez um leve aceno com a mão quando Hendran se apercebeu que ele acordara. Foi até à gaveta onde guardavam as velas e tirou duas, indo, com cuidado, substituir as que já tinham quase acabado. Pelo caminho, o seu estômago soltou um audível gorgolejo de fome. Há quantas horas não mordiscava um pedaço duro de pão?

– Há caldo na cozinha, ainda deve estar morno – murmurou Hendran, lançando-lhe um sorriso leve.

O pequeno não pensou duas vezes. Depois de tratar das velas, apressou-se até ao piso inferior. A cozinha estava silenciosamente vazia. A noite deveria ir já avançada para não haver por ali nenhuma criança. Foi até à panela ampla, ainda sob as achas mornas, serviu-se do caldo e devorou-o sem sair do lado da lareira. Serviu-se uma segunda vez, pescando um ou outro pedaço extra de carne cozida, e dessa vez foi sentar-se no banco corrido. Comeu mais devagar, saboreando o caldo enxabido e pensando em tudo o que acontecera nas últimas horas em que estivera acordado. Sorriu para si. Pelo menos conseguira ajudá-los de alguma forma.

Ao acabar o jantar tardio, lavou a sua tigela e voltou para o quarto, indo ajudar a jovem que vigiava os doentes.

*

Yudarh regressou ao amanhecer, quando Ayalal e a senhora Drane (que substituíra Hendran, para que a rapariga pudesse dormir), eram os únicos despertos. Como no dia anterior, o meio-demónio, sob o seu disfarce, voltou a observar os doentes e, desta vez, não só lançou dois feitiços a seis diferentes enfermos, como, no fim, voltou a observar os que já tratara antes. De dentro da capa que trazia sobre os ombros, retirou um graveto fino, não muito direito, e fez uma pergunta à directora. Esta indicou-lhe as enxergas daqueles que sofriam ou davam indícios de ter alguma hemorragia intestinal, e foi a esses que o tiefling se dirigiu.

À distância, Ayalal observava-o, atento. Tinha a certeza que aquilo só poderia ser uma varinha mágica – nunca vira de perto uma que fosse real. Yudarh baixou-se e tocou com o graveto no doente mais próximo. Os lábios moveram-se, formando uma rápida palavra de comando, e a ponta da varinha soltou um brilho branco. 

Junto do pequeno, Lysa remexeu-se sob a coberta e soltou um leve mas dorido gemido. A atenção dele focou-se de imediato na amiga. Ela piscou as pálpebras, e levou uma mão ao rosto, esfregando os olhos.

– Lysa…?

A jovem baixou a mão ao escutá-lo e rodou a cabeça para ele, fitando-o com uma expressão algo confusa. Os segundos em que ficou em silêncio pareceram demasiado longos para Ayalal. O rapaz conteve a respiração, temendo que outra crise de alucinações a tomasse.

– Ay... o que aconteceu?

Aliviado, Ayalal libertou o ar que havia retido nos pulmões. Levou uma mão pequena ao peito e sorriu-lhe com carinho.

– Estiveste muito doente. Mas agora já estás melhor, e vais ficar boa – disse. E, ao escutar-se, sentiu-se como um pequeno adulto.

Lysa suspirou, lançando uma mirada vaga ao tecto, e depois às restantes pessoas presentes no quarto. Focou o olhar em Yudarh, as sobrancelhas franzindo-se um pouco.

– Quem é? – murmurou, num tom algo vago. A sua mente estava ainda demasiado difusa para que a presença de um desconhecido a incomodasse realmente. Era quase como uma curiosidade.

Ayalal hesitou. Por um lado não se sentia no direito de denunciar o disfarce de Yudarh, por outro não achava justo que a amiga ficasse na ignorância.

Começara a debruçar-se, de forma a poder segredar-lhe ao ouvido, quando um estranho arrepio lhe percorreu o corpo. Endireitou-se de imediato e rodou a cabeça de um lado para o outro, procurando uma explicação para aquela sensação. Parecia tudo dentro do normal – os doentes descansavam nas suas enxergas, Yudarh estava junto de outra criança, enquanto a directora observava. No entanto, sentia os pelos dos braços eriçados sob as mangas da camisola. Passou uma mão pela nuca, erguendo os olhos para o tecto. Era uma sensação similar à que sentia quando as outras crianças o observavam discretamente, mas desta vez não havia ninguém a observá-lo. Engoliu em seco, quando uma ideia assustadora o assaltou. Seria a alma invisível de algum dos mortos que ficara presa ao quarto?

– Ay? O que se passa?

O rapaz baixou o olhar para Lysa, tentando disfarçar a sua repentina apreensão.

– Eu… depois explico – murmurou. Não conseguiu impedir-se de voltar a olhar em volta, agora mais discretamente.

*

Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte VI)


Ayalal ergueu o punho para bater à porta, porém, antes de chegar a tocar na madeira, Yudarh agarrou-lhe o braço e baixou-o com cuidado. Em vez da criança, foi o tiefling que bateu, com bastante mais força do que o pequeno seria capaz. Aguardaram por um bocado até a porta se abrir num movimento abrupto.

Desconcertado, o olhar da senhora Drane focou-se, por um momento, na figura desconhecida, antes de se aperceber da presença do órfão descalço. Os lábios formaram uma linha apertada, antes de falar.

– Agradeç…

– Encontrei esta criança a correr a cidade, meio desesperada, à procura de um curandeiro. Vim ajudar no que puder. – Yudarh interrompeu-a, num tom firme e grave.

A directora piscou os olhos, meio atordoada com a forma directa como o homem falara.

– O que… quem é o senhor? – quis saber, franzindo o sobrolho.

– Sou um viajante, com alguns poderes curativos. Mas se os meus serviços não forem realmente necessários… – Recuou um passo e chegou mesmo a dar meia volta.

Ay arregalou os olhos, o coração falhando um batimento.

– Não! – A directora esticou a mão, mas conseguiu impedir-se de o agarrar pela capa. Yudarh olhou por cima do ombro, erguendo uma sobrancelha. – Peço perdão. Agradecemos qualquer auxílio que nos possa prestar, senhor – hesitou, sendo óbvia a sua dúvida. – Mas o clérigo mais apto da cidade foi incapaz de nos ajudar. E não sei se temos como pagar-lhe…

O tiefling abanou a cabeça, afastando a menção de pagamento.

– Permita-me examinar os casos mais graves e farei o que puder.

Apesar da incerteza, a senhora Drane acabou por dar passagem a ambos, fechando a porta atrás de si. Vários pares de olhos espreitaram da cozinha, silenciosos. Yudarh lançou-lhes uma mirada vaga, enquanto seguia a directora.

– Porque nome o poderei tratar, senhor?

– Daryun – apresentou-se. – E este rapaz precisa de descansar. Está mais do que esgotado, senhora.

Drane suspirou, lançando um olhar a Ayalal.

– Esse rapaz já se esforçou demasiado nestes últimos dias – notou. – E parte da culpa disso é minha. Mas acredito que ele só conseguirá sossegar ao lado de uma das nossas jovens, quando ela estiver melhor.

O rapaz fez um aceno de confirmação. Já deixara a amiga sozinha demasiado tempo. E se tivesse piorado ainda mais? A súbita ansiedade fê-lo passar à frente de ambos e correr escadas acima.

– Ayalal!

A voz da directora perdeu-se atrás dele. A criança tropeçou no penúltimo degrau, levando as mãos ao chão para se apoiar e impedir-se de se estatelar, e continuou até à porta do quarto, onde estacou, o olhar precipitando-se para a enxerga de Lysa. A amiga estava deitada de lado, encolhida sobre si. Ofegava baixinho por entre os lábios semi-abertos. Ayalal ajoelhou-se ao lado dela, levando-lhe uma mão à fronte febril. O pano húmido que estaria a tentar aplacar-lhe a subida da temperatura havia deslizado para o chão.

Atrás dele, a senhora Drane e Yudarh entraram no quarto. A directora indicou ao homem as três enxergas onde jaziam os doentes mais graves, entre as quais estava a de Lysa, que era também a mais próxima. Ele abeirou-se, levou um joelho ao chão, ao lado de Ayalal, e pousou o bastão entre ambos.

– Eu trato dela – disse, num tom baixo, dirigindo-se mais à criança do que à directora. – Daqui a uns minutos já estará melhor. Mas precisará de descansar. Tal como tu. Se ela ficar preocupada com o teu bem-estar, piorará, por isso trata de dormir, Ayalal.

O rapaz não disse nada, mas o aceno lento confirmou que o ouvira. Retirou a mão da fronte de Lysa e afastou-se um pouco, dando-lhes espaço.

Yudarh procedeu a um pequeno exame, obrigando-a a deitar-se de ventre para cima. Ao sentir o movimento, as pálpebras de Lysa arrastaram-se morosamente e os olhos abriram-se. Fitou cada um deles, no entanto não houve qualquer reconhecimento no seu rosto, só aquele estranho medo, como se lhe pudessem fazer mal.

Após o exame, o tiefling sussurrou algumas palavras e as mãos recriaram um conjunto de movimentos fluídos que demoraram poucos segundos. A seguir pousou a mão esquerda sobre a fronte de Lysa e disse uma última palavra. Um brilho fraco emergiu de sob a palma, para desaparecer pouco depois. A jovem não tentou fugir. Na verdade, quando a luz se esvaiu, as suas pálpebras descaíram num movimento lento, e fecharam-se por completo.

Ayalal sobressaltou-se, os olhos arredondando-se de terror, enquanto os dedos se crispavam no tecido das calças.

– O que se… – começou a directora, também assustada.

– Está tudo bem. A doença foi removida e ela adormeceu devido à exaustão – informou Yudarh, após retirar a mão. – Mas a jovem continua fraca. Vou tentar restaurar um pouco da sua força, porém precisará de repouso absoluto. Todos eles. Se insistirem em levantarem-se, não o permita, directora, a não ser para fazerem somente as necessidades básicas. Por hoje conseguirei tratar de seis dos casos, no máximo.

A senhora Drane respondeu um “sim, senhor” murmurado, enquanto o via iniciar um novo feitiço, este um pouco mais demorado que o primeiro.

Quando deu por terminado o caso de Lysa, dirigiu-se à próxima enxerga, repetindo o procedimento. Ayalal pouca atenção lhe prestou, voltando a aproximar-se da amiga para a observar de perto. O rosto descontraíra-se para uma expressão esgotada mas pacífica e o corpo deixara de tremer daquela forma descontrola. Um vacilante sorriso de alívio despontou nos lábios da criança, e duas lágrimas escaparam-se-lhe pelos cantos dos olhos. Apressou-se a limpá-las à manga da camisola, não fosse Lysa acordar de repente e as visse.

Minutos depois, Yudarh ergueu-se de junto do último caso ao qual podia prestar ajuda naquele dia, para observar as restantes crianças, ao mesmo tempo que dava algumas recomendações à directora. Por fim, fitou o local onde estava Ayalal. O pequeno jazia deitado e meio encolhido, ao lado de Lysa, e ambos dormiam. O meio-demónio sorriu para si.

*

Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte V)


Antes de iniciarem a caminhada, Yudarh deixou a criança acalmar-se, aproveitando para lhe examinar as escoriações causadas pela criatura.

– O que era aquilo? – murmurou Ay, não conseguindo deixar de olhar para o corpo caído.

O tiefling não lhe respondeu logo. Tocou-lhe no queixo arranhado e murmurou um feitiço. O rapaz sentiu uma ligeira comichão no ferimento para, de seguida, o ardor começar a desvanecer-se. Permaneceu somente uma sensação de dormência. O mesmo aconteceu com os restantes arranhões e nódoas negras.

– Aquilo – começou, endireitando-se devagar. A sua expressão contorceu-se num esgar de desgosto e simultânea repulsa. – É uma aberração criada pelos drow. Chamam-lhe irnakurse, que na nossa língua significa “perfeitos”. Do que já investiguei e observei, acredito que antes pudesse ter sido um elfo que sofreu todo um processo de tortura insana num dos seus laboratórios, que o transformou naquilo: uma abominação repleta de raiva, de mente e espírito quebrados. Uma pobre alma que sofreu mais do que alguma vez deveria ser permitido.

Drow… Ayalal não sabia exactamente o que eram mas, pela forma como a mão de Yudarh se crispara no bastão ao explicar-lhe a origem do monstro, eram seres muito maus. Olhou a criatura que o tentara devorar, agora com uma palpitação de pena no peito. Quem teria sido no passado? Onde estaria a sua família?

– Esses Drow vivem aqui? – murmurou, preocupado.

– Não “aqui”. Vivem num local muito mais profundo, as Terras Negras, que têm ligação com algumas destas grutas. Foi daí que o irnakurse veio, em busca de comida, imagino.

Enquanto Ayalal estava distraído com a nova informação, o meio-demónio moveu uma mão num gesto ligeiro e recitou meia dúzia de palavras. As nódoas de sangue e uma grande parte da sujidade que manchava a pele e roupa da criança desapareceram.

Não se demoraram muito mais. No regresso, Ay pôs de lado o assunto do irnakurse e contou-lhe o que sabia sobre o que se passava no orfanato: o número de doentes, os sintomas, as mortes, a incapacidade do clérigo de as curar, o rato que as outras crianças tinham encontrado. Yudarh movia-se com a segurança de quem era familiar com o local, simultaneamente atento ao que o rapaz dizia e ao que os rodeava.

Por fim, a luz fraca das tochas anunciou-se à distância, conferindo ao negrume um fraco tom alaranjado que era mais animador do que Ayalal imaginara. Tentou andar mais depressa. Quando estava em plena escuridão, a sua visão fazia com que tudo ficasse numa mistura perturbadora de preto e branco.

Ao irromperem para o centro da encruzilhada, a criança inspirou fundo. Teve vontade de se sentar no chão, mesmo ali, e não se mexer durante um bom bocado. As pernas ameaçavam não o suster de pé, e ele não estava certo de quanto mais aguentariam.

– Ayalal.

A criança ergueu o olhar encovado para Yudarh, e os olhos piscaram, focando mais do que a vista. A súbita segurança que a presença de Yudarh conferia fizera com que a sua mente perdesse o estado de alarme e começasse a avançar para uma letargia de exaustão.

– Sim, Mestre?

– Fora deste túnel vou ser um viajante que encontraste enquanto procuravas ajuda na cidade – disse o tiefling, muito sério. – Não sabes o que sou, donde venho, nem sequer o meu nome.

Ay franziu um pouco as sobrancelhas. A ideia de que o Mestre Yudarh os ajudaria numa espécie de anonimato incomodava-o. Ele merecia que o reconhecessem como alguém que fazia o bem, não como um ser demoníaco que muitos pensavam que era.

– É o melhor. Não queremos alimentar a imaginação fértil e muitas vezes rebuscada do povo – notou o adulto.

– Mas ainda tem… – A criança apontou para os chifres, algo hesitante. – Como…?

Um pequeno sorriso ergueu um dos cantos dos lábios de Yudarh. Num gesto rápido levou a palma da mão livre ao peito e fez os dedos terminados em garras deslizarem até à base do pescoço. Sussurrou quatro palavras e, de seguida, afastou a mão. Por um fugaz instante, foi possível antever-se um emaranhado de energia que o corpo assimilou de imediato. De forma gradual, o tom avermelhado da pele de Yudarh foi absorvido por um castanho claro; os olhos outrora vermelhos, ganharam um tom também ele castanho mas mais claro, quase como dourado; chifres, garras, cauda e cascos desapareceram como se nunca tivessem existido; o cabelo passou de branco a puro negro; as feições suavizaram-se, tornando-o mais jovem; e o bastão perdeu as runas e revestiu-se de nós rústicos próprios de um ramo de árvore.

A criança piscou os olhos, com um ar aparvalhado. Era como se Yudarh estivesse lá e, ao mesmo tempo, não estivesse. A imagem parecia tremelicar, permitindo-lhe ver as duas imagens intercaladas.

– É um feitiço de disfarce – explicou o meio-demónio. – Uma mera ilusão. É possível que não a vejas muito bem, porque sabes quem eu sou. Em todo o caso, não dura muito mais do que duas horas, por isso sejamos rápidos.

Não tardaram a sair do túnel para a cidade, Ayalal seguindo um pouco atrás de Yudarh. Pouco depois estavam diante das portas duplas do orfanato que se erguiam austeras na sua madeira escura. Avançaram para os degraus.

*