Ao Passado


De caderno e pena na mão, Ayalal sentou-se no parapeito da janela do quarto, enfrentando o toque morno dos últimos raios de sol. Ameaçavam cegá-lo, enquanto se escondiam por detrás dos telhados das casas da cidade. Fechou os olhos e suspirou. Os sons vividos das rotinas diárias fluíam pelas ruas, ora suaves qual brisa que agita um prado na Primavera, ora agrestes como as ondas a baterem nos altos rochedos que espreitam o mar. Relaxavam-no com a sua despreocupada cadência.

O súbito choro de uma criança quebrou-lhe a concentração. Estremeceu. Mesmo quando as tentava esquecer, elas voltavam, voltavam sempre: a culpa, a dor, o medo… as memórias que lhe corroíam a alma e o ameaçavam.

Abriu os olhos e fitou o caderno, deixando a pena deslizar sobre a página amarelada.

“O Passado retém a alma,
Que o Futuro é incapaz de conquistar.”


A cada dia que passava, todos esses sentimentos lhe desejavam um bom-dia e uma boa-noite. Era o cumprimento dos mortos, daqueles que ele violara, sem violar; dos que sangrara, sem sangrar; dos que torturara, sem torturar; dos que matara, sem matar. A sua mera existência fora sentença de morte para amigos e inocentes. E porquê?

Cerrou os dentes. Os incisivos afiados cortaram e magoarem-lhe o interior do lábio inferior. O sabor do próprio sangue lembrou-lhe do dia em que “ela”, diante de si, degolara uma criança e o obrigara a beber do seu sangue. O pânico e a agonia da pequena menina ficaram-lhe marcados a fogo na memória, tal como o sabor quente que o engasgara e a impotência em que as grilhetas o haviam afundado.

“Com ela transcreve um Presente
Que decai quebrado”


Mas isso era passado. Ergueu o olhar do caderno e fitou a porta. Para além dela, estavam as provas do seu egoísmo e cobardia. Os seus amigos. Não se sentia no direito de ter alguém que se preocupasse consigo, alguém que pusesse a vida em perigo para o salvar. No entanto, não se coibira de os prender ao coração, de reter em si cada defeito e virtude, cada trejeito, cada palavra, cada sorriso. Deles e seus.

Apesar das diferenças que corriam entre eles, devia a cada um a sua razão de sorrir, um contentamento sincero que formigava sob as lágrimas que ainda vertia quando não havia ninguém para as ver, quando a solidão era a única que o cumprimentava e lhe sussurrava uma música de embalar cantada por uma recordação doce. Uma recordação que fora luz ténue antes de tudo ser escuridão.

“E geme a mágoa,
Enquanto a torna veneno.”


Engoliu em seco e abanou a cabeça. Algumas das coisas que perdera não tinham retorno, porém permaneciam com ele – cada momento gravado onde ninguém os poderia apagar, nuvens plúmbeas donde chovia o seu mundo. Era o gesto terno e a lágrima vertida, a gargalhada tão sincera e o medo que o levava a esconder-se dentro de si, era a vontade de fugir e no entanto enfrentar o monstro que crescia e se adensava para tomar a forma de um anjo. Cada sim tinha um senão, cada escolha que tomava uma contradição que o magoava pouco depois de o fazer sorrir.

Valeria a pena insistir? A questão arremetia vezes sem conta de encontro ao forte que erguera dentro de si, cada onda levando fragmentos quebrados enquanto tentava alcançar-lhe os alicerces. Houve alturas em que lhes tocara, em que aquela questão conseguira vergá-los até quase os destruir. E em cada uma dessas alturas, alguém ajudara a reconstruí-lo, uma mão firme e cheia de coragem que não o deixara submergir e afogar-se. Asas que o fizeram voar e erguer-se do chão onde havia caído.

“Mas que direito tem o Passado
De navegar”


Pousou o caderno no colo e levou uma mão ao peito, apertando a camisa sobre o coração que também se apertava. Por vezes ponderava em quão tranquilizante seria deixar de o sentir, deixar o pensamento ruir, enquanto o espírito se escoava, para permitir que a existência deixasse de ser um tormento. No entanto, que culpa tinha ele? Culpa de pensamento, culpa de omissão, culpa de ignorância. E teria uma culpa ainda maior se se deixasse partir sem conquistar a própria vontade, se deixasse que a íngreme montanha que era viver o impedisse de se erguer até ao cume.

Inspirou fundo e baixou a mão, voltando a pegar no caderno e deixando a pena continuar a deslizar sobre a folha.

“Nas águas da memória
Onde a quer afogar?”


Aos “eles” que lhe davam a mão, devia o mundo. Por vezes a frustração levava-o a esquecer-se “deles” e a pensar somente em si – numa má parte de si. Essas eram as suas maiores falhas, erros que o Passado gostava de o ver repetir, vezes e vezes sem conta, apagando de si a esperança, escondendo por momentos a luz. Mas essa nunca se apagava, mantinha sempre a mão estendida à espera que Ayalal estendesse a sua para a tomar. Escondido no seu crepúsculo, ele amava-a. Contudo, um medo irracional munia-lhe o coração, um temor de que essa luz o pudesse queimar. Quando, na verdade, era a escuridão que o magoava e o fantasma “dela”.

“Ela” era fogo e trevas disfarçados de luz, e Ayalal sabia-o. “Ela” manipulava-o sem precisar de puxar os fios que movem as marionetas. Há mais de cem anos que lhe puxava os sentimentos mais negros, aqueles que ele abominava, aqueles que por vezes o faziam pensar em si como um monstro. Deixou a língua tocar os cortes superficiais que os incisivos tinham causado, voltando a saborear o sangue.

“Que direito tem de ser rei
Daquilo que não é seu?”


Mas ele não era um monstro. Sabia bem disso e aqueles que lhe eram mais queridos haviam-lho frisado. Ele acreditava neles. No entanto a crença era um desafio, um jogo de mentes, e Ayalal não conseguira impedir que “ela” fosse a mais forte, que se impusesse e manipulasse, insidiosa qual serpente, cada acto vil massacrando-lhe o espírito.

Porém não mais o permitiria. Ele reconhecia o que era e o que sentia, reconhecia a escuridão que germinava no cerne do seu espírito, e reconhecia a luz que o encorajava a continuar. Ambas pertenciam-lhe. Se em algum dia uma delas conquistasse a outra, não permitiria que “ela” tivesse mão nisso. Seriam as suas escolhas que reinariam, a sua vida que ditaria o caminho a trilhar. O seu desejo.

“Porque é minha a alma,
Não sua. Dito eu”


Suspirou. Para isso teria que crivar-se no Presente e seguir os seus próprios intentos. O Passado seria sempre um espelho diante de si, de reflexo mutável; seria uma sombra no caminho, mas não uma sombra que o reprimia, não um peso que o esmagava. Dia após dia, teria de remover esse ónus, impedir que ele se amparasse em si, para ser Ayalal a amparar-se nele: nos abraços, nos sorrisos, nas esperanças que a lembrança abarcava. Para tirar dele forças e não fraquezas, com as quais abriria caminho e traçaria um destino com o qual pudesse dançar ao despertar da aurora.

“O que é Presente e o que será
Futuro.”


Enquanto a tinta secava, encarou as nuances do céu, os últimos raios de sol e as memórias que o preenchiam. E sorriu ao mundo.


“Ayalal
10.Arodus.4711”

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