Mosteiro das Sete Formas, 28 de Calistril de 4593 AR (parte II)


Após abrir a porta, Yudarh observou-a durante um segundo, de sobrolho franzido.

– Senhora directora – disse, mantendo um tom neutro. – Em que posso ajudá-la?

– Preciso… – A voz cambaleou. – Preciso de falar consigo, senhor Yudarh. Ou Daryun.

Ele nada comentou, ficando a aguardar que algo mais fosse dito. A directora engoliu em seco, porém enfrentou-lhe o olhar.

– A Lysa morreu e o Ayalal está bastante ferido – informou, num tom mais baixo. – E pode correr perigo de vida.

O tiefling não estava à espera daquilo. Piscou os olhos e entreabriu os lábios para dizer qualquer coisa, porém ficara sem palavras. Afastou-se da entrada, dando passagem à mulher de meia-idade que entrou e esperou ser guiada. Nunca fora até à casa do meio-demónio, mas desde pequena que sempre soubera onde ele vivia. Ninguém se atrevia a aproximar-se, ninguém excepto Ayalal, Lysa e, segundo ouvira dizer, alguns dos guardas da cidade. Drane nunca sentira uma óbvia necessidade de se deslocar até ali, não por qualquer preconceito, mas simplesmente por sentir que cada um pertencia a locais diferentes da cidade, e não havia razões para se cruzarem. Admitia que isso fora um erro da sua parte. Provara-se isso quando o tiefling saíra de sua casa para auxiliar na cura da epidemia que rasara as crianças, em que fora Ayalal a tomar a iniciativa de o ir buscar. Nessa altura ficara grata ao meio-demónio sob disfarce de homem que abordara o orfanato. E agora ei-la ali, voltando a requerer a sua ajuda, sem mais ninguém a quem acorrer.

Yudarh guiou-a até à sala e indicou-lhe uma cadeira. Ele ficou de pé diante da directora.

– O que é que aconteceu?

Drane suspirou, pousando as mãos no colo e apertando uma sobre a outra. Contou-lhe como os haviam encontrado e aquilo que Ayalal lhe soubera dizer. Quando terminou, os lábios pressionaram-se até formar uma linha fina e trémula. Piscou os olhos várias vezes, afastando as lágrimas que ameaçavam cair.

Yudarh voltou-lhe as costas e deu alguns passos. Os punhos cerravam-se com força junto ao corpo. O tiefling não queria acreditar no que a directora dissera, mas sabia que ninguém, muito menos ela, se daria ao trabalho de o visitar para lhe contar uma mentira tão dolorosa. Inspirou fundo e abanou a cabeça numa negativa repleta de frustração. Falhara, inegavelmente. Deixara que as únicas pessoas que nos últimos anos lhe haviam estendido a mão e acarinhado caíssem nas garras de um mal retorcido que as estilhaçara e roubara o que tinham de mais precioso. Parou diante da lareira, observando as chamas. Num gesto súbito, esmurrou a parede, a dor do impacto estremecendo-lhe os ossos.

Em silêncio, a directora aguardou, evitando olhá-lo.

– Encontrá-los-ei – acabou por dizer o meio-demónio. As suas palavras estavam impregnadas num tom definitivo. – Resolverei o assunto.

*

Sob a forma do viajante humano, Yudarh acompanhou a directora de regresso ao orfanato. Foram encontrar Ayalal no quarto, sentado na sua enxerga, encostado a uma parede. A criança não ergueu o olhar quando os ouviu entrar. As suas pálpebras continuavam inchadas e os olhos vermelhos fitavam o papel pequeno que tinha nas mãos.

Yudarh acocorou-se ao lado dele, sem que o rapaz lhe dispensasse qualquer fragmento de atenção. O meio-demónio espreitou o desenho amachucado. Ayalal pedira-lhe aquele pedaço de pergaminho porque queria fazer um presente para Lysa. Yudarh dera-lho e vira-o desenhar nele, muito concentrado. Ay chegara a perguntar-lhe se queria ser incluído, mas o meio-demónio frisara bem que não, que era algo especial de Ayalal para Lysa, partilhado só por ambos, para celebrar terem-se conhecido. E agora ali estava o pequeno, sozinho com uma lembrança que o deveria estar a dilacerar.

– Ayalal – murmurou. – Olha para mim.

O rapaz não lhe obedeceu. Se estava a ignorá-lo propositadamente ou se não tinha coragem para o fazer, Yudarh não estava certo. Talvez a sua alma estivesse demasiado distante, talvez…

– A culpa foi minha.

As sobrancelhas de Yudarh quase se uniram a meio da fronte quando ele as franziu. Esticou uma mão e levou-a ao rosto do rapaz, erguendo-lho e voltando-lho para si. Algumas manchas arroxeadas e inchadas mordiam a pele pálida de Ayalal junto de um dos olhos.

– Isso não é verdade – disse-lhe com firmeza. – A culpa é das criaturas que vos magoaram. Tu és inocente, Ayalal. Eu sei isso, a Lysa também o sabe.

Os lábios da criança tremeram.

– A Lysa já não sabe nada – sussurrou a custo.

– Enganas-te. O corpo dela pode ter desaparecido, mas a alma continua a existir, algures. A vossa deusa, Andoletta, estará a aguardá-la para que possa viver no reino sagrado. E, desse local, ela observar-te-á. Sempre. Nunca duvides disso.

Ayalal desviou o olhar sem lhe responder. Yudarh sabia que ele não conseguiria acreditar, não para já. Os acontecimentos eram demasiado recentes. O tempo ajudaria a sarar, pouco a pouco, aquele profundo ferimento.

O tiefling suspirou e, desistindo da troca de palavras, murmurou um feitiço que o pequeno já uma vez presenciara. Um formigueiro familiar correu o braço partido de Ayalal, assim como a ferida junto à nuca, e as dores que a criança sentia começaram a desvanecer-se até serem somente uma recordação.

– Agora estás um pouco melhor – disse Yudarh. No entanto, curar o estado físico do rapaz era tirar-lhe somente uma ínfima parte do sofrimento. Fez-lhe uma festa no rosto, talvez a primeira em muitos anos, antes de afastar a mão e erguer-se. – Vem ter comigo quando te sentires melhor, estarei à tua espera.

Como esperava, não obteve nenhuma resposta de Ayalal, só o silêncio da mágoa.


Mosteiro das Sete Formas, 28 de Calistril de 4593 AR (parte I)


As lágrimas caíam em silêncio, enquanto Ayalal observava as chamas a consumirem o corpo sobre a pira fúnebre. De braço ao peito e ligadura em volta da cabeça, ele encontrava-se lado a lado com a directora, na fila da frente. A sua mão deslizou até ao bolso e retirou do interior o pedaço de pergaminho que deveria ter oferecido a Lysa no dia anterior, como agradecimento e esperança de que continuassem sempre juntos. Desdobrou-o e observou o desenho que ele próprio fizera. Com linhas toscas de tinta preta, Ayalal representara ambos, de mãos dadas, e escrevera o nome de cada um sobre a figura respectiva. Na altura pensara que Lysa ficaria orgulhosa por testemunhar os avanços das suas aulas com Yudarh.



Engoliu em seco. Devia atirá-lo para as chamas, deixar que ardesse com ela, como a sua última oferenda.

Fechou a mão sobre o desenho, esmagando-o enquanto os dentes se cerravam com força. Era inútil, tão inútil quanto ele fora ao ser a causa da sua morte. A culpa fora sua. Se ele não tivesse ido atrás do gato, se não se tivesse afastado, ela não teria de o procurar. Estaria viva e ainda poderia sorrir. Nunca mais a poderia abraçar ou dar a mão. Naquele momento, aquele desenho não passava de uma mentira.

– Desculpa – sussurrou, fitando o fogo com os olhos turvos pelas lágrimas. Deveria ter sido ele, não ela. Ele devia estar morto. Porque é que os deuses não o teriam permitido? Porque é que fora tudo tão errado?

Inspirou fundo e voltou a guardar o desenho no bolso, sem se atrever a largá-lo. Permaneceu assim até o fogo se extinguir.

No final da celebração fúnebre, foi-lhes dada a opção de guardarem as cinzas de Lysa. Ayalal deixou que a senhora Drane decidisse a esse respeito. Após alguma hesitação, trouxeram-nas e a directora guardou-as no seu gabinete, no interior de um pote de barro.

– Quando as quiseres, elas estarão aqui – murmurou para um Ayalal silencioso que seguira os seus passos até à porta, onde se deixara ficar à espera. Ele pareceu não reagir no primeiro instante, mas depois os seus olhos fitaram a prateleira onde estava o pote. A directora viu neles um desespero que lhe cortou o coração.

A mulher fechou a porta atrás de si, deixou a criança à guarda de uma das raparigas mais velhas, e voltou a sair do orfanato. Caminhou pelas ruas a passos largos, afastando-se da zona mais populosa. A sua expressão reflectia a preocupação profunda que a perseguia. 

Nessa manhã a guarda fora até ao orfanato escutar o relato de Ayalal a respeito do que se passara no dia anterior. No entanto, antes de ele lhes dizer tudo o que sabia, já a directora Drane lho fizera contar tudo, tão pormenorizadamente quanto conseguira, por entre estremecimentos e soluços. Por essa razão, os guardas não tinham obtido toda a verdade. Sob exigência da directora, e para sua protecção, Ay omitira que os três homens que descrevera o tinham tentado capturar e matar por ser descendente de um vampiro. Fora também essa a grande razão porque ela impedira o clérigo de curar os ferimentos de Ayalal. Se o homem tivesse continuada com a sua magia, a criança poderia estar agora morta devido a uma descarga de energia positiva.

Se não podia confiar à guarda informação tão vital, precisaria do auxílio urgente de outra fonte. Não poderia permitir que Ayalal voltasse a ser atacado, nem que mais alguém do seu orfanato sofresse um destino como o de Lysa.

Subiu as escadas íngremes cravadas na pedra da própria montanha e pisou o princípio do túnel iluminado pelas tochas eternas. Deteve-se por um momento. Sabia para onde ia e ao que ia, porém entrar sozinha num túnel vazio deixava-a reticente. Tentou ignorar a hesitação e avançou. Atravessou a encruzilhada, mantendo o olhar fixo no seu destino e fazendo por não dispensar qualquer atenção à escuridão na qual mergulhava um dos caminhos. Acreditava nos mitos a respeito das criaturas que habitavam a escuridão, era impossível não existir vida nas imensas galerias que minavam as montanhas. Porém, se não havia indícios de ataques a centros urbanos, era porque não deveria preocupar-se com esse assunto.

Parou diante da porta de Yudarh e bateu três vezes. Aguardou de costas direitas e rosto solene até a porta se abrir.

Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte VI)


– Não… – A voz da directora tremeu quando o seu olhar caiu sobre o corpo no chão. – Não faça esse feitiço. Tratarei do rapaz sem qualquer magia. Agradeço, no entanto, reverendo.

O clérigo piscou os olhos, confuso com aquela decisão.

– Não irei cobrar nada, senhora – garantiu, pensando para si que o problema seria o custo do seu trabalho. Por norma eram feitas doações à Igreja de Aroden pelos serviços que prestavam, mas havia sempre exepções.

A senhora Drane abanou a cabeça numa negativa peremptória.

– Ele sarará por si mesmo. Esses não são, com certeza, os seus ferimentos mais profundos.

Apesar de obviamente em desacordo com aquela atitude, o clérigo aquiesceu face às últimas palavras. Endireitou-se com um suspiro que lamentava por todo aquele momento.

Por sua vez, a directora do orfanato ajoelhou-se ao lado de Ayalal, mantendo uma compostura firme mas não séria. A criança fitava-a em desespero, o seu olhar implorando-lhe por algo impossível, uma coisa que só os deuses ou os feitiços mais poderosos eram capazes.

– A Lysa partiu, Ay – murmurou-lhe, estendendo um braço e abarcando-lhe os ombros. Ainda assim o tom vacilou, como se ela mesma não estivesse certa daquilo com que se deparara.

A criança encolheu-se, em parte devido à dor que o toque lhe causara.

– Não. Ela está aqui, está mesmo aqui – indicou, os olhos arregalando-se, enquanto pegava na mão fria do corpo.

– Está, mas… está vazia. A sua alma já não pertence a este mundo – notou. Drane mordeu o lábio inferior que estremeceu por um momento diante da sua própria constatação. Tossicou para aclarar a voz. – Partiu para outro reino.

– Não. – Ayalal voltou a negar, apertando a mão. – Não, não…

– Tu és forte, Ayalal, e já és crescido – disse-lhe num falso tom calmo. Era uma mentira. Estava ao lado de um rapazito que nesse dia fazia sete anos. Era-lhe impossível encontrar palavras de consolo, e tinha a certeza que nenhuma das suas sortiria o efeito desejado. Tudo lhe parecia demasiado cruel. – A Lysa não gostaria de te ver triste.

O rosto do rapaz contorceu-se num esgar de dor e o choro tomou-o novamente, prendendo-o em si. Ayalal encostou a mão gelada ao rosto, chorando para ela.

Não tardou muito para que no beco se concentrasse uma pequena multidão de observadores que sussurravam entre si. Por fim, de espada embainhada à cintura e uniformes com o brasão da cidade, dois oficiais da guarda da cidade abriram caminho por entre as pessoas, parando junto ao corpo. Questionaram o homem que encontrara Lysa e Ayalal – um mendigo que vagueara até ali por acaso – e só depois tentaram interrogar a criança. Todavia a directora Drane interpôs-se, lançando um olhar duro a ambos.

– O rapaz precisa de repouso e de tratamentos. Não está em condições para nada, senhores oficiais – ditou, erguendo-se e endireitando as costas. – Poderão encontrá-lo no orfanato, quando for necessário.

Os guardas entreolharam-se e, tendo mais em conta as palavras e menos o tom ríspido, acabaram por aceder.

– Amanhã de manhã – disse um deles. – Um guarda passará no orfanato para interrogar o rapaz.

– Muito bem. Agradeço a compreensão. Quanto à jovem… quando pudermos prestar-lhe as últimas honras, gostaria de ser informada.

Ambos garantiram que muito provavelmente no próximo dia o corpo seria entregue à Igreja de Aroden onde poderiam proceder ao funeral.

Enquanto a conversa decorria, chegou um novo grupo de guardas, trazendo consigo uma maca improvisada. Quando um deles tocou no corpo de Lysa, Ay soltou um mescla de gemido e grito e voltou a debruçar-se sobre ela, de forma protectora.

– Deixem-na! – gritou-lhes, enterrando o rosto no peito dela, enquanto o braço não partido a semi-rodeava. – Não lhe toquem!

A directora inspirou fundo e forçou-se a dirigir-se à criança. Dobrou-se sobre ela.

– Ayalal, os senhores precisam de trabalhar. A Lysa não pode ficar aqui no chão para sempre, sabes disso – disse, pousando-lhe uma mão na cabeça. Por reacção, a criança encolheu-se e gemeu de dor, levando a que a senhora Drane erguesse a mão de imediato. Ficara húmida. Ao olhar para ela, deu conta do tom vermelho escuro e só então se apercebeu que Ay tinha o cabelo da nuca empapado em sangue. – Anda, larga-a. Tem de ser. Amanhã poderás voltar a estar com ela.

Tardou uma dúzia de segundos, até o rapaz se obrigar a largar o corpo morto. Porém o seu olhar ficou preso nele, tal como o coração.

Com um gemido de esforço, a senhora Drane pegou nele ao colo e afastou-o do beco. Ay caiu num choro silencioso durante todo o caminho até ao orfanato. Lá, as crianças esperavam por eles na cozinha e, com o olhar, seguiram os recém-chegados enquanto estes atravessavam o corredor e subiam para o quarto das crianças.

Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte V)


Vozes. Sussurros perto de si, gritos altos. Ambos perfuravam-lhe a cabeça sem piedade. 

– Ele está a acordar! 

Ayalal não reconhecia o dono daquela voz. Quem seria… Lysa? 

Escancarou os olhos e tentou levantar-se num impulso. Uma gigantesca onda de dor percorreu-lhe o corpo, arrancando-lhe um grito engasgado. Alguém o amparou, ajudando-o a voltar à posição inicial num movimento lento. 

– Calma, pequeno, calma. É melhor que não te mexas, estás muito magoado. 

Os olhos focaram-se devagar, enquanto combatia a tontura que lhe enevoava a mente. Ayalal começou a discernir os contornos de uma pessoa ajoelhada ao seu lado. Não era Lysa, nem sequer era uma mulher. Havia consternação no rosto do desconhecido. 

– Eles são do orfanato, reconheço a rapariga – disse uma voz próxima que, ao mesmo tempo, parecia distante. 

Ay inspirou fundo e, ao fazê-lo, arrepiou-se. Sentia-o a pairar no ar, impregnando-lhe os pulmões. Cheirava a sangue. Aos poucos, a memória começou a erguer-se do foço onde havia mergulhado. Recordou-se do gato que perseguira, do beco sem saída onde desembocara, dos homens que o haviam emboscado, de Lysa. 

Devagar, para não voltar a sucumbir à dor, obrigou-se a levantar e olhou em volta. Uma dúzia de pessoas debruçavam-se sobre alguma coisa, cochichando entre elas. Aos seus pés havia um corpo imóvel. 

– Lysa – sussurrou. As pernas vacilaram ao primeiro passo, no entanto sustiveram-lhe o peso. – Lysa… 

– Não vás, pequeno, não há nada que possas fazer. Espera que o clérigo chegue e trate de ti, ele não deverá tardar. 

Ayalal ignorou o homem, avançando tão depressa quanto conseguia. A mão direita agarrava o braço esquerdo, contendo-lhe as oscilações assim como as dores que raiavam do osso partido. 

O rapaz deixou-se cair de joelhos ao lado de Lysa. Mordeu o lábio inferior com força enquanto os olhos se enchiam de lágrimas. Um soluço esmagou-lhe a garganta. A saia do vestido dela estava manchada de sangue e rasgada em várias zonas. Os pulsos descobertos e o pescoço esguio revelavam marcas de um tom arroxeado. De cabeça descaída para um dos lados, ela mantinha os olhos abertos. Estavam completamente vazios de vida, tal como o seu corpo. Não havia um único sopro, uma única inspiração que lhe erguesse o peito. 

A criança começou a tremer, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. 

– Acorda… – murmurou, tocando-lhe no braço. – Por favor, volta, Lysa… volta… 

Cerrou os dentes, vergando-se sobre o corpo e encostando a fronte ao peito dela. Soluçou alto, enquanto uma dor terrível lhe esmagava o peito e uma mão repleta de garras lhe retorcia o coração. Ele sabia que não havia forma de ela acordar ou sequer voltar. 

Um silêncio pesado acompanhou o choro do rapaz. Algumas pessoas observavam a cena com olhares de lamento, outras desviavam o rosto, abanando a cabeça. Porém ninguém se atreveu a afastar a criança do corpo caído na pedra fria. 

Passaram alguns minutos. Um par de passos rápido ecoou pelo beco, aproximando-se. Estacou junto a Ayalal e, por alguns segundos, nada disse. Só depois uma mão lhe tocou o ombro ao de leve num gesto de conforto, quando o recém-chegado se acocorou ao lado dele. 

– Compreendemos a tua dor, pequeno. A sua alma repousará em paz, os deuses irão velar por ela, garanto-te. 

O rapaz não respondeu. Na verdade, as palavras tinham passado por ele como um sopro rápido do vento. Não lhe diziam nada, não lhe ofereciam nada. Eram somente um eco repetitivo que pairava sem destino certo. 

O clérigo deixou escapar um suspiro de lamento. Com a mão livre, tomou o pendente que lhe pendia do pescoço e que representava o Olho de Aroden. 

– Vou atenuar parte da dor que te consome, meu filho – disse, apertando-lhe o ombro ao de leve. 

Começou a recitar as palavras sagradas que imploravam ao seu deus que sarasse a pobre alma diante de si. Porém, quando estava quase no final do ritual, um vulto precipitou-se para ele num passo de corrida. 

– Pare! – A rispidez da voz ressaltou pelo beco, cortando a voz ao clérigo. O homem ergueu o olhar encarando a mulher de meia-idade diante de si. Alguns dos cabelos grisalhos haviam-lhe fugido do coque e a sua respiração parecia arranhar os pulmões. 

Ay reagiu à voz. Levantou o rosto devagar e, com os olhos tingidos de vermelho, fitou a Directora Drane.