Mosteiro das Sete Formas, 21 de Neth de 4592 AR (parte VI)


Ayalal ergueu o punho para bater à porta, porém, antes de chegar a tocar na madeira, Yudarh agarrou-lhe o braço e baixou-o com cuidado. Em vez da criança, foi o tiefling que bateu, com bastante mais força do que o pequeno seria capaz. Aguardaram por um bocado até a porta se abrir num movimento abrupto.

Desconcertado, o olhar da senhora Drane focou-se, por um momento, na figura desconhecida, antes de se aperceber da presença do órfão descalço. Os lábios formaram uma linha apertada, antes de falar.

– Agradeç…

– Encontrei esta criança a correr a cidade, meio desesperada, à procura de um curandeiro. Vim ajudar no que puder. – Yudarh interrompeu-a, num tom firme e grave.

A directora piscou os olhos, meio atordoada com a forma directa como o homem falara.

– O que… quem é o senhor? – quis saber, franzindo o sobrolho.

– Sou um viajante, com alguns poderes curativos. Mas se os meus serviços não forem realmente necessários… – Recuou um passo e chegou mesmo a dar meia volta.

Ay arregalou os olhos, o coração falhando um batimento.

– Não! – A directora esticou a mão, mas conseguiu impedir-se de o agarrar pela capa. Yudarh olhou por cima do ombro, erguendo uma sobrancelha. – Peço perdão. Agradecemos qualquer auxílio que nos possa prestar, senhor – hesitou, sendo óbvia a sua dúvida. – Mas o clérigo mais apto da cidade foi incapaz de nos ajudar. E não sei se temos como pagar-lhe…

O tiefling abanou a cabeça, afastando a menção de pagamento.

– Permita-me examinar os casos mais graves e farei o que puder.

Apesar da incerteza, a senhora Drane acabou por dar passagem a ambos, fechando a porta atrás de si. Vários pares de olhos espreitaram da cozinha, silenciosos. Yudarh lançou-lhes uma mirada vaga, enquanto seguia a directora.

– Porque nome o poderei tratar, senhor?

– Daryun – apresentou-se. – E este rapaz precisa de descansar. Está mais do que esgotado, senhora.

Drane suspirou, lançando um olhar a Ayalal.

– Esse rapaz já se esforçou demasiado nestes últimos dias – notou. – E parte da culpa disso é minha. Mas acredito que ele só conseguirá sossegar ao lado de uma das nossas jovens, quando ela estiver melhor.

O rapaz fez um aceno de confirmação. Já deixara a amiga sozinha demasiado tempo. E se tivesse piorado ainda mais? A súbita ansiedade fê-lo passar à frente de ambos e correr escadas acima.

– Ayalal!

A voz da directora perdeu-se atrás dele. A criança tropeçou no penúltimo degrau, levando as mãos ao chão para se apoiar e impedir-se de se estatelar, e continuou até à porta do quarto, onde estacou, o olhar precipitando-se para a enxerga de Lysa. A amiga estava deitada de lado, encolhida sobre si. Ofegava baixinho por entre os lábios semi-abertos. Ayalal ajoelhou-se ao lado dela, levando-lhe uma mão à fronte febril. O pano húmido que estaria a tentar aplacar-lhe a subida da temperatura havia deslizado para o chão.

Atrás dele, a senhora Drane e Yudarh entraram no quarto. A directora indicou ao homem as três enxergas onde jaziam os doentes mais graves, entre as quais estava a de Lysa, que era também a mais próxima. Ele abeirou-se, levou um joelho ao chão, ao lado de Ayalal, e pousou o bastão entre ambos.

– Eu trato dela – disse, num tom baixo, dirigindo-se mais à criança do que à directora. – Daqui a uns minutos já estará melhor. Mas precisará de descansar. Tal como tu. Se ela ficar preocupada com o teu bem-estar, piorará, por isso trata de dormir, Ayalal.

O rapaz não disse nada, mas o aceno lento confirmou que o ouvira. Retirou a mão da fronte de Lysa e afastou-se um pouco, dando-lhes espaço.

Yudarh procedeu a um pequeno exame, obrigando-a a deitar-se de ventre para cima. Ao sentir o movimento, as pálpebras de Lysa arrastaram-se morosamente e os olhos abriram-se. Fitou cada um deles, no entanto não houve qualquer reconhecimento no seu rosto, só aquele estranho medo, como se lhe pudessem fazer mal.

Após o exame, o tiefling sussurrou algumas palavras e as mãos recriaram um conjunto de movimentos fluídos que demoraram poucos segundos. A seguir pousou a mão esquerda sobre a fronte de Lysa e disse uma última palavra. Um brilho fraco emergiu de sob a palma, para desaparecer pouco depois. A jovem não tentou fugir. Na verdade, quando a luz se esvaiu, as suas pálpebras descaíram num movimento lento, e fecharam-se por completo.

Ayalal sobressaltou-se, os olhos arredondando-se de terror, enquanto os dedos se crispavam no tecido das calças.

– O que se… – começou a directora, também assustada.

– Está tudo bem. A doença foi removida e ela adormeceu devido à exaustão – informou Yudarh, após retirar a mão. – Mas a jovem continua fraca. Vou tentar restaurar um pouco da sua força, porém precisará de repouso absoluto. Todos eles. Se insistirem em levantarem-se, não o permita, directora, a não ser para fazerem somente as necessidades básicas. Por hoje conseguirei tratar de seis dos casos, no máximo.

A senhora Drane respondeu um “sim, senhor” murmurado, enquanto o via iniciar um novo feitiço, este um pouco mais demorado que o primeiro.

Quando deu por terminado o caso de Lysa, dirigiu-se à próxima enxerga, repetindo o procedimento. Ayalal pouca atenção lhe prestou, voltando a aproximar-se da amiga para a observar de perto. O rosto descontraíra-se para uma expressão esgotada mas pacífica e o corpo deixara de tremer daquela forma descontrola. Um vacilante sorriso de alívio despontou nos lábios da criança, e duas lágrimas escaparam-se-lhe pelos cantos dos olhos. Apressou-se a limpá-las à manga da camisola, não fosse Lysa acordar de repente e as visse.

Minutos depois, Yudarh ergueu-se de junto do último caso ao qual podia prestar ajuda naquele dia, para observar as restantes crianças, ao mesmo tempo que dava algumas recomendações à directora. Por fim, fitou o local onde estava Ayalal. O pequeno jazia deitado e meio encolhido, ao lado de Lysa, e ambos dormiam. O meio-demónio sorriu para si.

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