Mosteiro das Sete Formas, 1 de Kuthona de 4592 AR (parte I)


Ay pegou numa pequena cesta que estava guardada na despensa, indo ter com Lysa à porta principal, meio a correr. Quando a alcançou, deu-lhe a mão e saíram para a cidade.

Nos dias que se seguiram à vinda de Yudarh, Ayalal não voltara a sentir a estranha presença fantasmagórica. Tal como antes, ajudara nas tarefas do orfanato, porém com mais ânimo, devido às melhoras que os feitiços haviam operado na sua amiga. O estranho de nome Dariun, após a sua terceira visita ao orfanato, despedira-se, sem aceitar qualquer pagamento por parte da Directora, e nunca mais fora visto nas redondezas. 

No primeiro dia em que Lysa se pudera levantar e andar pela casa, tinham ido ambos rezar a Andoletta. Durante esse momento a sós, Ay contara-lhe a respeito de quem os havia ajudado. Omitira a parte da criatura que quase o devorara – ela não precisava de mais essa preocupação, nem de saber que as lendas sobre garras sem dono que puxavam quem passava para a escuridão eram mais do que imaginação. E agora que Lysa estava quase recomposta, poderiam ir visitar Yudarh.

Pelo caminho, pararam junto a uma banca e compraram meia-dúzia de peças de fruta com algum dinheiro que Lysa juntara nos últimos tempos. A grande maioria dos alimentos vendidos na cidade era dispendiosa, devido ao processo de importação que sofria. Não crescia muito mais do que fungos e líquenes sob os cumes das Montanhas da Beira do Mundo, e sobre eles o ambiente era demasiado inóspito para a maioria das plantas e animais perdurarem, exceptuando num lugar. Na superfície existia um antigo mosteiro de monges, o qual dera o nome à cidade. Ayalal ouvira dizer que, no seu interior, havia um maravilhoso jardim habitado por árvores milenares capazes de tocar a Esfera Exterior, onde os deuses habitavam. Os seus frutos eram por isso abençoados, e só os monges se alimentavam deles.

Suspirou, enquanto via Lysa pagar pela fruta meio enfezada. Seguiram então caminho até casa do mestre Yudarh. Quando atravessaram a encruzilhada, Ay fitou o túnel onde a escuridão densa se perdia de vista. Dentro de si revolvia-se um sem número de questões a respeito de todo o tipo de coisas que poderiam viver nas profundezas e de que forma Yudarh as mantinha afastadas da população dispersa da cidade, se teria ajuda de outros guerreiros ou magos… e se o seu pai poderia viver ali. Não tinha a certeza se queria saber a resposta a essa última questão.

Lysa bateu à porta e esperaram. Passaram-se talvez dez minutos, até Yudarh aparecer. Ay perguntou-se se ele faria de propósito para demorar tanto tempo, de forma a desencorajar as visitas; se estaria a fazer algum tipo de experiência e precisaria de tempo para arrumar os utensílios mágicos; ou se simplesmente estaria a dormir.

O meio-demónio olhou de um para o outro, com a sua expressão quase sempre séria e desagradada. Lysa respondeu-lhe com um sorriso amplo. Ele acabou por revirar os olhos e soltar um suspiro, dando-lhes passagem, sem qualquer palavra, antes de fechar a porta atrás de si.

– Trouxemos alguma fruta. Precisa de se alimentar bem, mestre – notou Lysa, quando entrou na sala. Ay pousou a cesta sobre a mesa, enquanto lançava uma mirada curiosa em redor. Encontrou o bastão, que agora sabia ser realmente mágico, encostado no canto do costume.

Yudarh parou junto da mesa, espreitando o interior da cesta antes de fitar os recém-chegados com uma certa descrença.

– Não sou eu que preciso de me alimentar bem, Lysa – fez notar. – És tu e esse pequeno pirralho.

– Nós alimentamo-nos – garantiu Lysa. – Mas queremos agradecer-lhe pelo que fez. Isto não é nada comparado com as vidas que salvou. É só… um pequeno gesto. Por favor, mestre.

Yudarh coçou uma bochecha com as garras de uma das mãos e acabou por fazer um gesto resignado para que deixassem ficar a fruta por ali.

– Já que vieram, sentem-se. Vou fazer-vos um chá – disse, voltando-lhes as costas e dirigindo-se a um armário.

Lysa e Ayalal entreolharam-se, estupefactos. Aquela atitude era, decerto, estranha. Ele nunca lhes oferecera um chá.

Yudarh pôs ao lume uma chaleira com água, antes de voltar para junto deles. Fitou Lysa com mais atenção.

– Como te sentes?

– Muito melhor. Tenho os músculos ainda doridos – confessou a jovem, apoiando os braços na mesa. – E não consigo fazer esforços durante muito tempo. Mas, tirando isso, estou bem. Devo-lhe isso.

– Não fiz mais do que aquilo que estava ao meu alcance. Não foi nada particularmente difícil – notou, desviando a atenção para a criança entre eles. As suas íris de um vermelho intenso perscrutavam-no de forma tão intensa que a criança baixou o olhar. – O Ayalal fez muito mais do que eu, e é graças a ele que estás viva.

– Não – murmurou Ay, abanando a cabeça, enquanto fitava as mãos. – Foi eu que causei a doença, não fui? Não foi o rato, pois não?

Uma das sobrancelhas do tiefling ergueu-se, enquanto Lysa piscou as pálpebras, incrédula.

– Podes repetir, Ayalal? – As garras de Yudarh tamborilaram sobre a mesa, produzindo um ruído que, no silêncio, parecia quase uma ameaça.

O rapaz encolheu o pescoço e as mãos crisparam-se nos joelhos.

– Foi culpa minha, por eu ter sangue de vampiro. Devo ter passado alguma doença…

– Oh, pelos deuses, rapaz! Que raio de ideia é essa? – perguntou Yudarh, erguendo-se num movimento rápido.

Ay encolheu-se mais, temendo que ele lhe fosse bater, porém o tiefling afastou-se com passos largos até à estante que continha a sua colecção de livros. Correu os olhos pelas lombadas e acabou por tirar um tomo pesado. Abriu-o nas primeiras páginas, folheando-o depressa. Depois voltou à mesa e pousou-o diante da criança.

– Vês aqui alguma coisa que diga que os vampiros, por defeito, sejam portadores de doenças contagiosas? – perguntou-lhe, sem paciência.

A criança espreitou o livro, olhando primeiro para uma bonita mas já antiga ilustração de um homem de porte elegante, muito pálido e de incisivos salientes. Depois olhou para a restante página cheia de palavras escritas numa letra fluída.

– Ah, mestre Yudarh… – Lysa ergueu um dedo, fazendo-o desviar a atenção para si. – As Letras não são ensinadas às crianças do orfanato. O Ay não sabe ler.

Yudarh respirou fundo e fechou os olhos por um segundo, pousando dois dedos na fronte.

A voz de Ayalal soou a medo, baixinho.

– Pode ensinar-me, mestre?

O crepitar do fogo acompanhou o silêncio que seguiu a questão. Lysa olhou para o interpelado, expectante.

Yudarh desviou o olhar para a chaleira cuja água começara a ferver. Passou uma mão pelo cabelo branco e rangeu os dentes. Nesse instante, a sua expressão pareceu perder parte da severidade, como se ele próprio estivesse cansado dela.

– Posso tentar, Ayalal.

*

Sem comentários:

Enviar um comentário