Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte II)


Quando, após o almoço, a cozinha do orfanato estava arrumada, os pequenos correram a irem buscar o único casaco remendado que tinham. Ay hesitou à porta da cozinha, após todos saírem, olhando para Lysa, enquanto apalpava com cuidado o conteúdo de um dos bolsos. O toque áspero do pergaminho percorreu-lhe os dedos. Também lhe queria dar um presente, porém talvez fosse melhor esperar até depois do jantar, depois do ambiente sossegar.

Imitou as restantes crianças e, depois de enrolar o cachecol no pescoço, certificando-se que ficava tão agasalhado quanto possível, esperou junto dos outros, à porta do orfanato. A Directora Drane chegou um pouco depois, parecendo contá-los com o olhar, e Lysa e outra das responsáveis vieram logo a seguir, sorrindo face ao entusiasmo que viam na maioria dos rostos.

Não tardaram a seguir em grupo pelas ruas, levantando olhares curiosos, enquanto avançavam em direcção à praça principal da cidade subterrânea. Uma corrente de ar gélida soprava através dos túneis, trazendo consigo a lembrança da neve que de momento deveria cobrir mais do que os picos das montanhas.

Muito subtilmente, Ayalal esticou a mão até segurar a de Lysa, deixando-se guiar em silêncio. As outras crianças falavam entre si; as que raramente saíam do seu lar apontavam bancas, casas, e até algumas pessoas de aspecto mais peculiar, como um grupo de quatro halflings que passava por eles com mochilas às costas, bordões em punho, e pequenas espadas à cintura.

Nem um quarto de hora depois, chegavam à praça. Fora montada uma pequena tenda num dos lados do círculo de chão empedrado com um toldo e uma bancada sobre a qual se fechava uma cortina feita de losangos coloridos. Vários caixotes de madeira dispunham-se em seu redor, de forma que os espectadores se pudessem sentar para assistir ao espetáculo, deixando atrás destes uma zona em que poderiam haver espectadores de pé, e ainda uma terceira área, à frente dos caixotes, onde se poderiam sentar no chão. Foi para essa última zona que as crianças foram levadas. Ay ficou numa das pontas, olhando expectante para a cortina. Por trás dela escutavam-se vozes baixas, das quais era impossível perceber o que diziam.

Foram chegando mais espectadores que se acomodaram atrás deles. Alguns perguntavam pouco discretamente donde viera toda aquela criançada. Ay lançava-lhes um olhar por cima do ombro, quando o som rápido do dedilhar das cordas de um instrumento musical se fez ouvir, captando a atenção de todos. A cortina abriu-se devagar, revelando uma marioneta de nariz comprido que nas mãos simples segurava um pequeno alaúde. A voz do boneco era fina e nasalada, enquanto em rimas divertidas se apresentava ao público como sendo um célebre menestrel que corria o mundo em busca de histórias sobre valentes cavaleiros e cavaleiras, donzelos e donzelas, terríveis deuses do mal, dragões, gigantes de pedra e magias que iam além do que se poderia imaginar. Quando falou das últimas, pequenas faíscas coloridas saltaram em seu redor, roubando inspirações estupefactas e exclamações excitadas à plateia.

As crianças observaram, maravilhadas, enquanto outras personagens, articuladas por cordões, foram surgindo, e a história sobre o terrível e maléfico dragão branco que vivia no pico mais alto do reino – que por sinal não era longe dali – se desenrolava, a música do alaúde tornando-se mais intensa. A marioneta em forma de dragão cuspiu meia dúzia de luzes esbranquiçadas, que deixaram o grupo de guerreiros e o próprio menestrel com pingentes de gelo por todo o corpo, o que roubou uma animada gargalhada a todos, inclusive ao próprio lagarto gigante, num tom roufenho.

Por fim os valentes guerreiros conseguiram derrotar o vil dragão, usando um estratagema que o levou a congelar-se a si mesmo, para depois ser partido ao meio pelo guerreiro maior e mais forte. Todos aplaudiram e os três bonecreiros que tinham controlado os fantoches saíram de trás do palco e fizeram amplas vénias perante eles. Moedas foram depositadas dentro de um chapéu que passou por entre os espectadores e regressou a um dos artistas que agradeceu a generosidade.

Apesar disso, Ayalal já não lhes tomava atenção. Esta fora desviada para um miar baixo, não muito longe de si. Um gato de pelagem suja passava a não mais de um metro deles, coxeando da pata da frente, de cabeça e cauda baixas. Os ossos projectavam-se por entre a magreza doentia. O rapaz hesitou, enquanto o sentia encolher-se a cada passo que se forçava a dar.

Ergueu-se, sem tirar os olhos do animal e aproximou-se devagar, não se dando ao trabalho de tentar silenciar os passos, para o gato dar pela sua presença. O animal olhou-o com dois orbes de um azul intenso, desconfiado.

– Não te quero fazer mal – murmurou Ay, apesar de estar consciente de que o animal não o entenderia.

No momento em que estendeu as mãos para o tomar nos braços, o animal soltou um silvo, o dorso arqueando-se e assustando o rapaz que recolheu os braços contra o peito. O gato partiu numa súbita corrida frenética, por entre os pés das pessoas que andavam por ali. Ayalal ficou chocado por um segundo, antes de partir a correr atrás do animal.

– Espera! – pediu em voz alta, tentando não perdê-lo de vista.

O gato entrou por uma ruela, para a qual Ay virou também. A luz ali era fraca e não havia uma vivalma à vista. Conseguiu ver a cauda do animal, quando este virou para uma segunda rua. Ofegou, correndo até lá, e acabando por descobrir um beco sem saída. O animal havia saltado por cima de uma pilha de caixotes, até ao topo de uma das casas de pedra que ladeavam as ruas. O rapaz parou junto do primeiro caixote. Lá de cima, o gato lançou-lhe um olhar penetrante, antes de desaparecer.

Ay soltou um suspiro e deixou que os ombros descaíssem. Desistia da perseguição. Não podia obrigar-se a tentar ajudar o animal, mas tinha pena. Tendo em conta o seu aspecto, o gato acabaria certamente por morrer.

Deu meia volta, desalentado. Porém, estacou, e o sobrolho franziu-se. À entrada do beco estavam três homens parados a olhar para si. Um deles era alto, de ombros largos e peito amplo, e o cabelo rapado revelava a marca esbranquiçada de uma cicatriz. Outro era magro e mais baixo – pareceria inofensivo, não fossem as duas adagas que empunhava. O terceiro, de espada à cintura e mãos apoiadas na cintura, era um meio-termo entre os primeiros. E sorria-lhe.

– Encontrámos a cria de vampiro – anunciou.

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