Mosteiro das Sete Formas, 19 de Neth de 4592 AR (parte I)


Nenhum dos doentes melhorou, pelo contrário: em alguns os sintomas agravaram-se, e destes surgiram outros que, sem piedade, atacaram os enfermos. Para além disso, novos casos despontaram entre os órfãos, tornando a divisão impossível de os alojar a todos. Por essa razão, Ay ajudou a transferi-los, ora ao colo, ora às costas, para o aposento maior: o quarto das crianças. Das 29 pessoas que viviam no orfanato, 21 havia adoecido. A ajudá-lo estavam somente a directora e a responsável mais nova. Às restantes crianças fora proibida a aproximação.

Até esse dia, nunca se apercebera realmente da diferença de forças que existia entre ele e os restantes órfãos, e até mesmo em comparação com próprias mulheres que cuidavam deles. Uma criança normal da sua idade não conseguiria levantar os doentes, muito menos transportá-los ao longo de um corredor.

– Ayalal. – A directora dirigiu-se-lhe, enquanto o rapaz aconchegava melhor Lysa, depois de a ter deitado. A doença galopara pela saúde dela: a febre recusava-se a baixar e, por vezes, nem os líquidos se seguravam no estômago. Ainda assim não era a pior.

– Sim, senhora Drane? – O tom dele era baixo, cansado. Porém, o que mais lhe pesava era a preocupação. Esfregou os braços doridos. Não tinha muita vontade de carregar mais coisas, já tivera a sua dose diária.

– Vai até ao templo e pede ao senhor clérigo para regressar contigo. Diz-lhe que nenhum deles teve melhoras… enfim. Diz-lhe o que se passa – pediu.

Ay hesitou, voltando a olhar o rosto lívido de Lysa, marcado pelas dores que o contorciam.

– Directora, porque é que me deixa tratar dos doentes? Não tem medo que fiquem piores por minha causa?

Drane ergueu uma sobrancelha.

– Isso são só disparates, rapaz. Estás aqui porque esta é uma tarefa com que poucas crianças conseguem lidar. És a excepção, e preocupas-te. Não me interessa o que és, ou o que os outros acham. Queres ajudar, é o que importa. Agora vai. – As palavras não perderam o tom severo e, de alguma forma, isso enfatizava a sinceridade.

O rapaz esboçou o sorriso pouco confiante, antes de sair do quarto, para iniciar uma corrida rápida pelo corredor. Desceu as escadas de dois em dois degraus e precipitou-se para a porta da rua. Pelo caminho, passou pela entrada em arco da cozinha, para além da qual se reuniam as restantes crianças.

– Ele está a fugir!

Ayalal olhou para trás, enquanto puxava o trinco pesado da porta. Três cabeças espreitavam da cozinha, com um olhar simultaneamente hostil e curioso. Não valia a pena responder-lhes, nunca ouviam. Ignorou-os e puxou a porta para si, abrindo-a o suficiente para sair.

– Vai-te embora, coisa!

Olhou por cima do ombro, a tempo de se baixar por instinto e levar as mãos à cabeça. Um projéctil voou por cima dele, indo aterrar lá fora com o barulho de metal a bater em pedra. Não esperou por mais nenhum incentivo e precipitou-se para a rua, meio aos tropeções, fechando a porta atrás de si com força. Encostou-se à madeira velha e inspirou fundo, as pálpebras fechando-se por um segundo.

– Eles vão odiar-me, faça o que fizer – murmurou, quando voltou a abrir os olhos. Um prato de estanho seu conhecido estava caído a dois metros dele. Foi apanhá-lo, com um suspiro, e rodou-o nas mãos. O impacto criara uma amolgadela na borda. – Tu também não fizeste nada de mal, pois não?

Abanou a cabeça e obrigou-se a afastar a frustração. Tinha uma missão mais importante. Com o prato debaixo do braço, correu até ao pequeno templo de Sarenrae, a uma dúzia de minutos de distância, e quase arrastou o clérigo atrás de si, de regresso ao orfanato.

Esperaram sob as luzes que mal mimetizavam o dia, após Ayalal bater à porta uma primeira vez. Voltou a bater, com mais força, sem obter resposta. Rangeu os dentes, já com vontade de esmurrar a madeira.

– Trago o senhor clérigo! – disse, erguendo a voz, assim como o rosto, para o andar superior. A directora e a outra mulher estavam ocupadas com os doentes, provavelmente não ouviriam se simplesmente batesse. Agora quem estava na cozinha com toda a certeza que ouvira. – Alguém abra a porta!

Dentro da sua túnica sacerdotal, o clérigo, um humano cuja meia-idade caminhava já para a velhice, ostentava uma preocupação resignada e paciente. Pousou uma mão no ombro da criança que começava a sussurrar impropérios, de lábios semicerrados. Ay mordeu a língua, calando-se. Se tivesse outra forma de abrir a porta… o clérigo não saberia nenhum feitiço para isso? Eles supostamente também sabiam magia! Yudarh conseguia abrir portas sem lhes tocar…

Por fim escutaram o trinco a ser corrido e a porta abriu-se. Os olhos de Ay arredondaram-se ao encarar a directora. O seu rosto estava muito mais rígido do que quando partira em busca de auxílio sagrado. Acontecera algo de grave.

“Lysa?” pensou, um arrepio de pânico percorrendo-lhe o corpo.

***

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