O mestre acabara por se levantar, trazendo duas chávenas para a mesa e a chaleira que pusera ao lume e que agora emanava um agradável perfume a cidreira. Serviu-os e, pouco depois, Ay pôs de lado o pergaminho e agarrou na sua chávena com ambas as mãos. Apesar da lareira acesa, o calor não era suficiente para lhe aquecer os dedos.
– Obrigado – murmurou, chegando-a até ao rosto para inspirar o vapor. Deu um golo pequeno, deixando que o líquido criasse um trilho quente até ao seu estômago, donde o calor se difundiu para as restantes partes do corpo.
Yudarh voltou a recostar-se na cadeira, com um sorriso leve nos lábios.
– Não me agradeças. Se morreres de frio no meu tugúrio, a Lysa mata-me – brincou um pouco, voltando a pegar do livro de poesia.
O pequeno riu-se e abanou a cabeça.
– Ela não seria capaz – notou, observando a superfície trémula da infusão, enquanto a imagem de uma Lysa determinada e furiosa lhe passava pela mente. Parecia tão diferente daquele estranho episódio, dias atrás, deitada na sua enxerga, febril. – Mestre… quando a Lysa esteve doente, sabe do que é que ela queria fugir?
O meio-demónio acabara de estender a mão livre para a chávena, porém deteve-a a meio caminho. A fronte enrugou-se ao franzir as sobrancelhas. Os orbes de íris vermelha avaliaram-no.
– O que queres dizer com isso, Ayalal?
O rapaz inspirou fundo, continuando a observar a chávena como se tivesse um sincero interesse na cerâmica simples com que fora feita.
– Durante as alucinações a Lysa chorou e gritou, aterrorizada. Implorou. Estavam a fazer-lhe mal… muito mal – acrescentou, o sorriso completamente desaparecido da sua expressão. – Falou no pai e na mãe, tentou fugir… literalmente.
– Perguntaste-lhe alguma coisa a esse respeito, depois de ela melhorar?
Ay abanou a cabeça numa negativa, e pressionou os lábios por um momento, antes de responder.
– Não fui capaz – confessou. – E achei que lhe pudesse fazer mal pensar nisso. Acho que não se lembra de que teve alucinações.
Yudarh acenou, puxando a chávena para perto de si com uma garra. Àquela proximidade, deixou que um dedo circundasse o rebordo.
– Foi uma decisão sábia, rapaz – murmurou. – Esse é o tipo de fantasma que deve permanecer enterrado, para o bem dela. Se não consegue ultrapassá-lo, a Lysa precisa de o esquecer tanto quanto possível.
Ay franziu as sobrancelhas, preocupado.
– E ele não virá até aqui? O pai dela?
– Em corpo não vem. Se vier em espírito, farei questão de voltar a matá-lo. – Uma fria resolução tomou-lhe conta do olhar. Não havia ali qualquer piedade, nenhuma dúvida no passo a seguir. O rapaz teve então percepção do quão implacável Yudarh poderia ser.
– Então o mestre salvou-a? – murmurou.
– Não… Em parte. Não matei o pai dela para a salvar, matei-o porque não merecia viver. A Lysa era um pouco mais velha do que tu, tinha uns 8 anos, quando a encontrei a vaguear na montanha. Era um farrapo quase varrido pelo vento, parte do rosto em carne viva, as roupas manchadas de sangue e pó, queimadas num dos braços… tentou fugir de mim quando me viu, completamente aterrorizada.
Ay ergueu o olhar para os chifres do meio-demónio e pensou nos restantes pormenores mais demoníacos, percebendo muito bem como a amiga se poderia ter assustado ao encontrá-lo.
– Como é que a convenceu de que não queria fazer-lhe mal?
– Não convenci – O sorriso dele foi simultaneamente triste e irónico. – Lancei-lhe um feitiço para que adormecesse, antes que caísse da vertente abaixo, e trouxe-a para minha casa. Tentei mantê-la adormecida tanto quanto possível, enquanto lhe tratava dos ferimentos e da exaustão. A cicatriz do rosto não teve remédio. Sarou, mas acho já tinha demasiados dias para que não deixasse marcas.
O tiefling deu um golo no chá, mais pensativo do que propriamente perturbado com o assunto, enquanto relembrava os pormenores.
– Obviamente, e como descobri pouco depois, os danos físicos eram o menor dos seus males. Não a poderia manter eternamente a dormir, por isso, ao fim de dois dias, deixei que os efeitos do soporífero passassem por si mesmos. Quando tomou suficiente consciência de si, o terror regressou. Olhou em volta, como se algo pudesse saltar sobre ela a qualquer momento – fez um gesto para o compartimento em seu redor –, até que se apercebeu da minha funesta presença. Nesse momento, os olhos dela arredondaram-se muito e recuou contra a parede, parecendo querer fundir-se com a pedra. Encolheu-se, dando-lhe um aspecto ainda mais pequeno. Nessa altura, não tentou fugir, mas a forma como o olhar saltava entre mim e a saída nas minhas costas era óbvia. Deixei-a habituar-se à minha presença, antes de tentar falar com ela. Quando falei, não me respondeu. Podia não perceber a minha língua, mas isso não conseguia adivinhar. Em todo o caso, não me aproximei, dei-lhe o seu espaço, e ela ficou à espera. Quando lhe virei as costas para ir à estante, ouvi-a levantar-se, tentar ser discreta e encaminhar-se para a saída. Deixei-a ir. Ela experimentou todas as portas, cada uma delas trancada. Ainda assim, com o desespero, tentou forçá-las.
– Mas não conseguiu – Ay murmurou o óbvio, enquanto observava o mestre com atenção.
– Não. Ao fim de um bocado ouvi-a parar com as tentativas, e no entanto não regressou para junto de mim. Pedi-lhe para voltar, mas ela manteve-se à porta. Não insisti nem fui ter com ela, mas disse-lhe “as portas estão fechadas com magia, só eu as consigo abrir”. Não tenho a certeza se acreditou, mas houve mais tentativas de arrombar a porta principal. Deixei-a. Algum tempo depois aproximei-me só o suficiente para lhe deixar uma tigela de caldo no chão e um cobertor, e a Lysa só não trepou pelas paredes porque não conseguia. Durante três dias foi este o nosso relacionamento, e só me consegui aproximar dela usando invisibilidade, para ter certeza de que não se tinha magoado com as tentativas de fuga. A Lysa acabou por interiorizar que não conseguiria sair sozinha e que, se eu lhe quisesse fazer mal, já o teria feito. Com muita cautela, acabou por se aproximar. – Sorriu um pouco e abanou a cabeça. – A primeira coisa que disse foi: o que queres de mim, monstro?
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