Mosteiro das Sete Formas, 10 de Kuthona de 4592 (parte III)


O rosto do rapaz contorceu-se numa careta.

– Não foi simpático…

– Não é nada a que os meus anos de vida não me tenham habituado – notou, olhando Ay por um segundo. – Não me ofendeu e respondi-lhe com a verdade, que estava a cuidar dela, que não queria nada em troca, que estava num lugar seguro onde ninguém lhe poderia fazer mal, e que não a deixaria sair, para já, porque poderia correr perigo. Era óbvio que a Lysa não conseguia acreditar totalmente, mas também não sabia bem o que pensar a meu respeito, o que criava um impasse na sua mente. Apesar de ainda me temer, tentou aproximar-se, porém qualquer movimento brusco da minha parte fazia-a ressaltar-se e encolher-se. Por vezes deixava-a sozinha, para que tivesse o seu espaço, os seus momentos a sós. Das primeiras vezes fiquei simplesmente invisível, na mesma sala, com medo do que ela pudesse fazer ao perceber que não havia mais ninguém junto dela. No primeiro dia a Lysa limitou-se a ficar na cama, abraçada a si mesma, enquanto os soluços lhe apertavam a garganta; no segundo, houve uma primeira fase de choro, depois pareceu falar consigo mesma e recompôs-se o suficiente para explorar o que havia aqui; no terceiro, pegou num dos livros e ficou a ver as ilustrações, sentada na cama. Nunca pediu para sair de casa comigo ou perguntou o que havia lá fora, e só muito aos poucos começou a fazer perguntas sobre mim, até que acabou por se habituar à segurança que um desconhecido como eu lhe poderia oferecer. Demorou quase duas semanas, até conseguir que me dissesse o que lhe acontecera e quem lhe fizera mal. Das primeiras vezes a Lysa começava simplesmente a chorar ou escondia-se sob o cobertor e não dizia mais nada durante mais de uma hora. Por fim disse-me, meio aos soluços, de mãos enclavinhadas uma na outra e a tremer, da forma como aquele a quem chamava pai a usava, e não só ele; como a mãe virava o olhar e se afastava, sem sequer tentar impedir o que lhe faziam; como a magoavam… eu vira as nódoas negras quando a examinara, assim como as marcas de dedos e dentes nos braços magros e no pescoço.

Ay passou uma mão pelo rosto, já esquecido do chá. As lágrimas picavam-lhe os olhos.

– Como… como é que podem fazer… isso? Porquê, mestre?

Yudarh ficou em silêncio por um instante.

– São almas perversas, Ayalal. Fazer o mal dá prazer a demasiadas criaturas deste mundo – murmurou, a contragosto. – E eu tinha em mãos uma criança que passara por tudo isso. A Lysa contou-me que fugiu do acampamento em que vivia, no sopé da montanha, na mesma noite em que sofreu a queimadura do rosto. Tentara escapar-se a um dos abusos do pai e, na fuga, acabou por tropeçar e cair meio dentro de umas das fogueiras. Apesar disso, o pai espancou-a e deixou-a inconsciente do lado de fora das tendas. Quando voltou a si, a noite ia alta, e o homem encarregue da vigia adormecera. Não obstante o medo do que lhe poderia acontecer se a encontrassem, fugiu montanha acima.

– E o mestre encontrou-a e salvou-a. Se não…

Yudarh fez um leve aceno de concordância.

– Depois disso fiz por encontrar o acampamento e puni quem tinha de punir. Antes de sair disse-lhe o que ia fazer, quando regressei disse-lhe o que fiz. Não era um remédio para a sua alma, mas, a longo prazo, esperava que lhe apaziguasse os medos. A Lysa viveu comigo durante mais quatro meses, até a levar para o orfanato e entregar ao cuidado da Directora Drane. Ela sentiu-se um pouco traída por eu o ter feito e ficou chateada… mas isto não é lugar para uma criança crescer e já passara demasiado tempo comigo. Precisava de ter contacto com outras pessoas e enfrentar o medo, e eu tinha a certeza que ela o conseguiria.

O tiefling acabou de falar com um sorriso leve nos lábios, de algum modo reflectindo um misto de prazer paternal e tristeza pelo conjunto de acontecimentos que haviam traçado o caminho de Lysa até ele.

*

Não muito depois, Ay voltou ao orfanato com toda a história a ebulir-lhe na mente de criança. Não conseguia perceber por que razão havia pessoas tão más no mundo, o que ganhavam em causar sofrimento aos outros, e porque é que nenhum deus os impedia. O que é que os Todos Poderosos tinham de tão importante para fazer? Rezingou para si e, distraído com os pensamentos, tropeçou no segundo degrau.

Mal entrou, procurou pela amiga na cozinha e, não a encontrando, subiu ao andar de cima. Ao vê-la ao fundo do corredor, correu para ela e abraçou-a pela cintura.

Lysa piscou os olhos, sem perceber ao que se devia aquela súbita demonstração de afecto.

– Estás bem, Ay? – perguntou, pousando-lhe uma mão no topo da cabeça.

O rapaz ergueu o rosto e sorriu, o olhar brilhando de carinho.

– Estou. Gosto muito de ti, Lysa. Mesmo muito.

Sensibilizada pela confissão inesperada, a jovem retribuiu o sorriso e ajoelhou-se no chão para melhor o abraçar contra o peito, deixando-se ficar assim por longos e sentidos segundos. Ayalal afagou-lhe o cabelo castanho com cuidado. Duvidava que a amiga tivesse alguém que a acarinhasse de alguma forma, até conhecer Yudarh. E, depois disso, fora viver com um grupo de estranhos. Ele não conseguia sequer imaginar quão assustada Lysa não estaria, quão sozinha e desprotegida. Apertou-a melhor.

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