– Directora, se não se importar, gostaria de ficar nesta sala mais alguns minutos para poder executar um feitiço – pediu Yudarh, fitando Drane. – Sem que nenhuma criança me interrompa. Não é nada de perigoso, preciso só de concentração.
A mulher hesitou, mais por estranheza do que algum tipo de medo, mas acabou por consentir.
– O tempo de que necessitar – garantiu. – Eu esperarei no exterior. Será mais fácil para pôr algum entrave.
Quando a senhora Drane saiu, Yudarh sentou-se no chão de madeira escura, pousou o bastão e cruzou as pernas. Retirou no interior das vestes o amuleto em forma de espada, de guarda raiada como se de um sol se tratasse. Concentrou-se no pendente e procedeu aos gestos que o feitiço divino requeria, invocando as palavras que continham parte da magia ritualística.
Os seus olhos tornaram-se cegos, os ouvidos surdos. Um fluxo aleatório de cenas e conversas decorridas na cidade preencheu-lhe a mente. Concentrou-se mais e, entre o emaranhado labiríntico de informação captou uma única linha que lhe interessava. Segurou-a com firmeza e seguiu por ela, perscrutando os nós a que levava, até atingir o seu fim. Encontrou o que queria.
A visão desembaciou-se e uma expressão determinada tomou-lhe o rosto duro. Com a ajuda do seu bastão, Yudarh levantou-se do chão. Lançou um olhar a Ayalal. Continuava na mesma posição, parecendo não dar atenção a nada. Noutra ocasião, a criança tê-lo-ia observado avidamente, sequiosa por aprender cada gesto do feitiço.
O tiefling abandonou o orfanato com passadas decididas. Como se fosse em direcção ao seu tugúrio, dirigiu-se para a zona menos populosa da cidade, onde as casas desabitadas e em mau estado subsistiam num pequeno reino. Era também por ali que poderia encontrar os casuais mendigos, os mais desfavorecidos, e os que tentavam manter-se à margem das leis da cidade.
Infiltrou-se pelas ruas estreitas dominadas por uma penumbra que dissuadiria muitos de palmilharem aqueles caminhos. Ali a iluminação era escassa, não havia o mimetismo de luz que diferia o dia da noite. Fora da estrada principal que levava aos túneis, a noite era eterna.
Passou junto a um grupo de homens que se reunia à entrada de uma ruela. Yudarh examinou-os com um olhar rápido. Para além da candeia pequena que os iluminava, viu duas adagas desembainhadas e rostos enegrecidos de ameaças. Nenhum deles era o seu alvo. Ao seguir em diante foi perseguido por olhares desconfiados, porém o meio-demónio relegou-os para segundo plano. Não fora ali para tratar de pequenos crimes. Os guardas da cidade tinham o dever de tratar desses. E, na verdade, tinham também o dever de tratar daqueles por quem ele procurava. No entanto, a simples ideia de que o trio de bandidos poderia escapar às mãos da justiça, inflamava-lhe a dor que sentia face aos seus crimes. Não o queria admitir perante a sua deusa, mas tomara o acontecimento como um dever pessoal.
Parou junto a uma tocha que iluminava a porta escura de uma taberna. Mais acima, o local onde outrora existira uma placa pendurada desaparecera, mas Yudarh lembrava-se do nome do estabelecimento – A Donzela Enforcada. Entrara ali somente uma vez, há muitos anos, em busca de informações. Hoje já tinha as informações de que necessitava.
Empurrou a porta e entrou para um ambiente semi-obscurecido por fumos provenientes de ervas a serem fumadas, da lareira acesa, e das candeias penduradas no tecto. Não era um local amplo e as mesas empilhavam-se quase umas em cima das outras, dando pouco espaço para se passar entre elas. Algumas conversas eram sussurradas, outras faladas alto. Ouviu o som de moedas a baterem nas mesas e dados a rolarem, e viu cartas a serem lançadas nos tampos, de face voltada para cima. Escutou risadas e resmungos e, enquanto passava os olhos por cima dos presentes como que casualmente, viu-os sentados a um canto. Correspondiam às visões que o feitiço lhe proporcionara e à descrição que Ayalal dera à Directora Drane.
Achegou-se do balcão e pousou os braços sobre o tampo. A sujidade estava de tal forma incrustada que quase disfarçava os veios da madeira com que fora feito. O taberneiro, um homem de rosto encarquilhado e barba rala, passou diante dele com duas cervejas em mãos, as quais pousou e atirou na direcção dos fregueses que as tinham pedido. As canecas escorregaram pelo tampo, entornando parte do conteúdo, até serem detidas por mãos que as ergueram para sorver o conteúdo.
– O que vai ser? – perguntou o taberneiro, falando como se nas suas palavras se fundisse algum tipo de cumprimento.
– Uma caneca de cerveja – respondeu Yudarh pousando sobre o balcão uma moeda que brilhou a dourado. – E algo mais.
– Hm… – fez o homem, erguendo uma sobrancelha grisalha. – E que algo mais seria esse?
– Informação. Procuro três homens. Violadores e assassinos – disse, não se dando ao trabalho de baixar o tom de voz. Fez a moeda escorregar até junto do taberneiro. – São procurados pela guarda, segundo consta.
As conversas continuaram em seu redor, mas Yudarh tinha a certeza que alguns pares de orelhas se teriam voltado para aquele lado.
– O senhor não me parece da guarda.
– E não sou. Tenho um assunto a tratar com esses três homens, se me pudesse ajudar. – E deu-lhe as descrições que tinha.
Houve indecisão no olhar do homem e um relancear pela sala. Depois o rosto tornou-se firme. O homem abanou a cabeça numa negativa.
– Não sei de quem fala. Terá de ir procurar noutro sítio – declarou, afastando-se para lhe ir encher uma caneca.
Yudarh não insistiu. Tomou a sua bebida e não tardou a deixar a taberna. Caminhou devagar pela rua. Atrás de si, escutou a porta a voltar a abrir e fechar, e ouviu passos quase tão calmos quanto os seus, seguindo-o. Mais do que um par. Enveredou por uma rua cuja luz provinha somente das extremidades que se cruzavam com outros caminhos. Os passos aceleraram.
– Hey, companheiro! – A voz alcançou-o quando ia a meio da rua.
Yudarh parou e rodou sobre si, encarando três homens. O da frente, de barba bem aparada e que lhe sorria de forma prazenteira, tinha a sua estatura e trazia uma espada embainhada à cintura; os outros dois, atrás dele, eram o oposto um do outro, um deles composto de músculos fortes, o outro magro, de mãos pousadas nos punhos das adagas ainda nas bainhas. Ambos sorriam também, um sorriso de satisfação própria, como se tivessem conquistado um objectivo de forma mais fácil do que haviam previsto.
– Boa noite, senhores – cumprimentou Yudarh. Não havia dúvida da identidade daqueles homens. Crispou a mão no bastão que segurava ao seu lado e conteve-se para não lançar um feitiço que os destruísse a eles e a parte das casas que os rodeavam.
– Ouvimos dizer que procurava três homens com… a nossa descrição? – perguntou o da frente, abrindo as mãos e referindo-se a si e aos outros dois. Agia como se fosse o chefe no pequeno grupo.
– De facto, procurava – respondeu, obrigando-se a manter um tom calmo. – Ontem violaram e mataram uma jovem e magoaram seriamente um meio-vampiro. Ainda não foram apanhados, e isso interessou-me.
Via no rosto dos três que já tinham uma ideia do que fazer com ele. Não se chegaram sequer a entreolhar quando Yudarh referira os crimes.
– Lamentamos mas de momento não aceitamos contratos – disse o homem da barba, avançando um passo para Yudarh. – Estamos quase a partir da cidade, não queremos deixar nada a meio.
O tiefling piscou os olhos, simulando uma admiração que não sentia.
– Partir? Seria uma pena não ficarem aqui – disse, levando uma mão ao interior do manto que o cobria. Eles observaram-no, na espectativa, pensando ver surgir uma bolsa de dinheiro. No entanto, o que Yudarh retirou de um dos bolsos foi um pequeno e seco tentáculo de polvo.
Os sobrolhos deles franziram-se um pouco, sem compreenderem. Antes que tivessem tempo de agir, Yudarh sussurrou palavras arcanas e fez gestos rápidos com as mãos. O pedaço de tentáculo desfez-se em pó que lhe escorreu por entre os dedos.
– Magia… – murmurou o homem mais musculoso. Com um urgente intento assassino no olhar, tentou passar à frente do seu chefe. Todavia, não deu mais do que dois passos. Aos pés de todos os três homens, um enorme círculo feito da mais pura escuridão surgiu como se cuspido por um buraco negro. Dele nasceram inúmeras formas tentaculares que se lançaram e enrolaram em redor dos primeiros seres vivos que encontraram. Nenhum escapou.
Yudarh observou-os, deixando cair a máscara impávida com que cobrira o rosto. Os seus orbes tomaram uma frieza implacável.
– Que esta punição vos entregue perante os deuses que julgarão os vossos crimes – ditou, vendo-os contorcerem-se para se tentarem escapar, vendo como entravam em pânico ao constatarem que eram incapazes de fugir, à medida que a constrição aumentava e lhes roubava a vida.
Gritaram por ajuda, mas ninguém veio. Imploraram piedade, porém Yudarh ignorou cada uma das palavras. Ofereceram-lhe dinheiro, no entanto nenhum deles tinha dinheiro suficiente que pagasse a vida de Lysa nem a dor de Ayalal.
Os tentáculos negros largaram os corpos quando já não havia qualquer vida que pudesse ser drenada.