Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte VI)


– Não… – A voz da directora tremeu quando o seu olhar caiu sobre o corpo no chão. – Não faça esse feitiço. Tratarei do rapaz sem qualquer magia. Agradeço, no entanto, reverendo.

O clérigo piscou os olhos, confuso com aquela decisão.

– Não irei cobrar nada, senhora – garantiu, pensando para si que o problema seria o custo do seu trabalho. Por norma eram feitas doações à Igreja de Aroden pelos serviços que prestavam, mas havia sempre exepções.

A senhora Drane abanou a cabeça numa negativa peremptória.

– Ele sarará por si mesmo. Esses não são, com certeza, os seus ferimentos mais profundos.

Apesar de obviamente em desacordo com aquela atitude, o clérigo aquiesceu face às últimas palavras. Endireitou-se com um suspiro que lamentava por todo aquele momento.

Por sua vez, a directora do orfanato ajoelhou-se ao lado de Ayalal, mantendo uma compostura firme mas não séria. A criança fitava-a em desespero, o seu olhar implorando-lhe por algo impossível, uma coisa que só os deuses ou os feitiços mais poderosos eram capazes.

– A Lysa partiu, Ay – murmurou-lhe, estendendo um braço e abarcando-lhe os ombros. Ainda assim o tom vacilou, como se ela mesma não estivesse certa daquilo com que se deparara.

A criança encolheu-se, em parte devido à dor que o toque lhe causara.

– Não. Ela está aqui, está mesmo aqui – indicou, os olhos arregalando-se, enquanto pegava na mão fria do corpo.

– Está, mas… está vazia. A sua alma já não pertence a este mundo – notou. Drane mordeu o lábio inferior que estremeceu por um momento diante da sua própria constatação. Tossicou para aclarar a voz. – Partiu para outro reino.

– Não. – Ayalal voltou a negar, apertando a mão. – Não, não…

– Tu és forte, Ayalal, e já és crescido – disse-lhe num falso tom calmo. Era uma mentira. Estava ao lado de um rapazito que nesse dia fazia sete anos. Era-lhe impossível encontrar palavras de consolo, e tinha a certeza que nenhuma das suas sortiria o efeito desejado. Tudo lhe parecia demasiado cruel. – A Lysa não gostaria de te ver triste.

O rosto do rapaz contorceu-se num esgar de dor e o choro tomou-o novamente, prendendo-o em si. Ayalal encostou a mão gelada ao rosto, chorando para ela.

Não tardou muito para que no beco se concentrasse uma pequena multidão de observadores que sussurravam entre si. Por fim, de espada embainhada à cintura e uniformes com o brasão da cidade, dois oficiais da guarda da cidade abriram caminho por entre as pessoas, parando junto ao corpo. Questionaram o homem que encontrara Lysa e Ayalal – um mendigo que vagueara até ali por acaso – e só depois tentaram interrogar a criança. Todavia a directora Drane interpôs-se, lançando um olhar duro a ambos.

– O rapaz precisa de repouso e de tratamentos. Não está em condições para nada, senhores oficiais – ditou, erguendo-se e endireitando as costas. – Poderão encontrá-lo no orfanato, quando for necessário.

Os guardas entreolharam-se e, tendo mais em conta as palavras e menos o tom ríspido, acabaram por aceder.

– Amanhã de manhã – disse um deles. – Um guarda passará no orfanato para interrogar o rapaz.

– Muito bem. Agradeço a compreensão. Quanto à jovem… quando pudermos prestar-lhe as últimas honras, gostaria de ser informada.

Ambos garantiram que muito provavelmente no próximo dia o corpo seria entregue à Igreja de Aroden onde poderiam proceder ao funeral.

Enquanto a conversa decorria, chegou um novo grupo de guardas, trazendo consigo uma maca improvisada. Quando um deles tocou no corpo de Lysa, Ay soltou um mescla de gemido e grito e voltou a debruçar-se sobre ela, de forma protectora.

– Deixem-na! – gritou-lhes, enterrando o rosto no peito dela, enquanto o braço não partido a semi-rodeava. – Não lhe toquem!

A directora inspirou fundo e forçou-se a dirigir-se à criança. Dobrou-se sobre ela.

– Ayalal, os senhores precisam de trabalhar. A Lysa não pode ficar aqui no chão para sempre, sabes disso – disse, pousando-lhe uma mão na cabeça. Por reacção, a criança encolheu-se e gemeu de dor, levando a que a senhora Drane erguesse a mão de imediato. Ficara húmida. Ao olhar para ela, deu conta do tom vermelho escuro e só então se apercebeu que Ay tinha o cabelo da nuca empapado em sangue. – Anda, larga-a. Tem de ser. Amanhã poderás voltar a estar com ela.

Tardou uma dúzia de segundos, até o rapaz se obrigar a largar o corpo morto. Porém o seu olhar ficou preso nele, tal como o coração.

Com um gemido de esforço, a senhora Drane pegou nele ao colo e afastou-o do beco. Ay caiu num choro silencioso durante todo o caminho até ao orfanato. Lá, as crianças esperavam por eles na cozinha e, com o olhar, seguiram os recém-chegados enquanto estes atravessavam o corredor e subiam para o quarto das crianças.

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