Mosteiro das Sete Formas, 28 de Calistril de 4593 AR (parte I)


As lágrimas caíam em silêncio, enquanto Ayalal observava as chamas a consumirem o corpo sobre a pira fúnebre. De braço ao peito e ligadura em volta da cabeça, ele encontrava-se lado a lado com a directora, na fila da frente. A sua mão deslizou até ao bolso e retirou do interior o pedaço de pergaminho que deveria ter oferecido a Lysa no dia anterior, como agradecimento e esperança de que continuassem sempre juntos. Desdobrou-o e observou o desenho que ele próprio fizera. Com linhas toscas de tinta preta, Ayalal representara ambos, de mãos dadas, e escrevera o nome de cada um sobre a figura respectiva. Na altura pensara que Lysa ficaria orgulhosa por testemunhar os avanços das suas aulas com Yudarh.



Engoliu em seco. Devia atirá-lo para as chamas, deixar que ardesse com ela, como a sua última oferenda.

Fechou a mão sobre o desenho, esmagando-o enquanto os dentes se cerravam com força. Era inútil, tão inútil quanto ele fora ao ser a causa da sua morte. A culpa fora sua. Se ele não tivesse ido atrás do gato, se não se tivesse afastado, ela não teria de o procurar. Estaria viva e ainda poderia sorrir. Nunca mais a poderia abraçar ou dar a mão. Naquele momento, aquele desenho não passava de uma mentira.

– Desculpa – sussurrou, fitando o fogo com os olhos turvos pelas lágrimas. Deveria ter sido ele, não ela. Ele devia estar morto. Porque é que os deuses não o teriam permitido? Porque é que fora tudo tão errado?

Inspirou fundo e voltou a guardar o desenho no bolso, sem se atrever a largá-lo. Permaneceu assim até o fogo se extinguir.

No final da celebração fúnebre, foi-lhes dada a opção de guardarem as cinzas de Lysa. Ayalal deixou que a senhora Drane decidisse a esse respeito. Após alguma hesitação, trouxeram-nas e a directora guardou-as no seu gabinete, no interior de um pote de barro.

– Quando as quiseres, elas estarão aqui – murmurou para um Ayalal silencioso que seguira os seus passos até à porta, onde se deixara ficar à espera. Ele pareceu não reagir no primeiro instante, mas depois os seus olhos fitaram a prateleira onde estava o pote. A directora viu neles um desespero que lhe cortou o coração.

A mulher fechou a porta atrás de si, deixou a criança à guarda de uma das raparigas mais velhas, e voltou a sair do orfanato. Caminhou pelas ruas a passos largos, afastando-se da zona mais populosa. A sua expressão reflectia a preocupação profunda que a perseguia. 

Nessa manhã a guarda fora até ao orfanato escutar o relato de Ayalal a respeito do que se passara no dia anterior. No entanto, antes de ele lhes dizer tudo o que sabia, já a directora Drane lho fizera contar tudo, tão pormenorizadamente quanto conseguira, por entre estremecimentos e soluços. Por essa razão, os guardas não tinham obtido toda a verdade. Sob exigência da directora, e para sua protecção, Ay omitira que os três homens que descrevera o tinham tentado capturar e matar por ser descendente de um vampiro. Fora também essa a grande razão porque ela impedira o clérigo de curar os ferimentos de Ayalal. Se o homem tivesse continuada com a sua magia, a criança poderia estar agora morta devido a uma descarga de energia positiva.

Se não podia confiar à guarda informação tão vital, precisaria do auxílio urgente de outra fonte. Não poderia permitir que Ayalal voltasse a ser atacado, nem que mais alguém do seu orfanato sofresse um destino como o de Lysa.

Subiu as escadas íngremes cravadas na pedra da própria montanha e pisou o princípio do túnel iluminado pelas tochas eternas. Deteve-se por um momento. Sabia para onde ia e ao que ia, porém entrar sozinha num túnel vazio deixava-a reticente. Tentou ignorar a hesitação e avançou. Atravessou a encruzilhada, mantendo o olhar fixo no seu destino e fazendo por não dispensar qualquer atenção à escuridão na qual mergulhava um dos caminhos. Acreditava nos mitos a respeito das criaturas que habitavam a escuridão, era impossível não existir vida nas imensas galerias que minavam as montanhas. Porém, se não havia indícios de ataques a centros urbanos, era porque não deveria preocupar-se com esse assunto.

Parou diante da porta de Yudarh e bateu três vezes. Aguardou de costas direitas e rosto solene até a porta se abrir.

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