Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4593 AR (parte V)


Vozes. Sussurros perto de si, gritos altos. Ambos perfuravam-lhe a cabeça sem piedade. 

– Ele está a acordar! 

Ayalal não reconhecia o dono daquela voz. Quem seria… Lysa? 

Escancarou os olhos e tentou levantar-se num impulso. Uma gigantesca onda de dor percorreu-lhe o corpo, arrancando-lhe um grito engasgado. Alguém o amparou, ajudando-o a voltar à posição inicial num movimento lento. 

– Calma, pequeno, calma. É melhor que não te mexas, estás muito magoado. 

Os olhos focaram-se devagar, enquanto combatia a tontura que lhe enevoava a mente. Ayalal começou a discernir os contornos de uma pessoa ajoelhada ao seu lado. Não era Lysa, nem sequer era uma mulher. Havia consternação no rosto do desconhecido. 

– Eles são do orfanato, reconheço a rapariga – disse uma voz próxima que, ao mesmo tempo, parecia distante. 

Ay inspirou fundo e, ao fazê-lo, arrepiou-se. Sentia-o a pairar no ar, impregnando-lhe os pulmões. Cheirava a sangue. Aos poucos, a memória começou a erguer-se do foço onde havia mergulhado. Recordou-se do gato que perseguira, do beco sem saída onde desembocara, dos homens que o haviam emboscado, de Lysa. 

Devagar, para não voltar a sucumbir à dor, obrigou-se a levantar e olhou em volta. Uma dúzia de pessoas debruçavam-se sobre alguma coisa, cochichando entre elas. Aos seus pés havia um corpo imóvel. 

– Lysa – sussurrou. As pernas vacilaram ao primeiro passo, no entanto sustiveram-lhe o peso. – Lysa… 

– Não vás, pequeno, não há nada que possas fazer. Espera que o clérigo chegue e trate de ti, ele não deverá tardar. 

Ayalal ignorou o homem, avançando tão depressa quanto conseguia. A mão direita agarrava o braço esquerdo, contendo-lhe as oscilações assim como as dores que raiavam do osso partido. 

O rapaz deixou-se cair de joelhos ao lado de Lysa. Mordeu o lábio inferior com força enquanto os olhos se enchiam de lágrimas. Um soluço esmagou-lhe a garganta. A saia do vestido dela estava manchada de sangue e rasgada em várias zonas. Os pulsos descobertos e o pescoço esguio revelavam marcas de um tom arroxeado. De cabeça descaída para um dos lados, ela mantinha os olhos abertos. Estavam completamente vazios de vida, tal como o seu corpo. Não havia um único sopro, uma única inspiração que lhe erguesse o peito. 

A criança começou a tremer, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. 

– Acorda… – murmurou, tocando-lhe no braço. – Por favor, volta, Lysa… volta… 

Cerrou os dentes, vergando-se sobre o corpo e encostando a fronte ao peito dela. Soluçou alto, enquanto uma dor terrível lhe esmagava o peito e uma mão repleta de garras lhe retorcia o coração. Ele sabia que não havia forma de ela acordar ou sequer voltar. 

Um silêncio pesado acompanhou o choro do rapaz. Algumas pessoas observavam a cena com olhares de lamento, outras desviavam o rosto, abanando a cabeça. Porém ninguém se atreveu a afastar a criança do corpo caído na pedra fria. 

Passaram alguns minutos. Um par de passos rápido ecoou pelo beco, aproximando-se. Estacou junto a Ayalal e, por alguns segundos, nada disse. Só depois uma mão lhe tocou o ombro ao de leve num gesto de conforto, quando o recém-chegado se acocorou ao lado dele. 

– Compreendemos a tua dor, pequeno. A sua alma repousará em paz, os deuses irão velar por ela, garanto-te. 

O rapaz não respondeu. Na verdade, as palavras tinham passado por ele como um sopro rápido do vento. Não lhe diziam nada, não lhe ofereciam nada. Eram somente um eco repetitivo que pairava sem destino certo. 

O clérigo deixou escapar um suspiro de lamento. Com a mão livre, tomou o pendente que lhe pendia do pescoço e que representava o Olho de Aroden. 

– Vou atenuar parte da dor que te consome, meu filho – disse, apertando-lhe o ombro ao de leve. 

Começou a recitar as palavras sagradas que imploravam ao seu deus que sarasse a pobre alma diante de si. Porém, quando estava quase no final do ritual, um vulto precipitou-se para ele num passo de corrida. 

– Pare! – A rispidez da voz ressaltou pelo beco, cortando a voz ao clérigo. O homem ergueu o olhar encarando a mulher de meia-idade diante de si. Alguns dos cabelos grisalhos haviam-lhe fugido do coque e a sua respiração parecia arranhar os pulmões. 

Ay reagiu à voz. Levantou o rosto devagar e, com os olhos tingidos de vermelho, fitou a Directora Drane.

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