Mosteiro das Sete Formas, 14 de Rova de 4591 AR (parte I) (um ano e sete meses depois)


Um encontrão súbito fê-lo perder o equilíbrio e estremecer. A taça de estanho escorregou-lhe das mãos, caindo ao chão e espalhando o conteúdo por cima dos seus pés. Ayalal premiu os lábios e engoliu em seco.

– Ah, tens de ter mais cuidado… – O rapaz atrás de si soltou uma risada trocista. Um palmo mais alto do que ele, era um dos membros do grupo que, dia após dia, implicava consigo, causando-lhe todo o tipo de problemas. – Parece que hoje já não jantas.

Ayalal não lhe respondeu. Manteve a expressão mais fechada possível, fingindo não ouvir, e baixou-se para apanhar a taça. Lysa ensinara-o a não reagir, a não dar parte fraca e, ao mesmo tempo, a não se vingar. Ela dizia que a vingança só o tornaria em alguém mau. Afastou-se, seguido pelos olhares de outros órfãos e, depois de lavar a taça e tentar limpar os sapatos, foi buscar um pano encardido, acocorando-se junto à poça de sopa. As regras do orfanato eram estritas: em caso de acidentes do género, para aprenderem a não desperdiçar comida, não serviriam um novo prato – uma noite de fome ensiná-lo-ia a ter mais cuidado.

– Ay, o que estás a fazer?

O rapaz ergueu a cabeça, olhando para Lysa que acabara de chegar à cozinha.

– Entornei a sopa – murmurou, após uma hesitação, voltando a fitar o chão. Não era realmente uma mentira. Ela já se preocupava demasiado, não iria contar-lhe como é que o seu jantar desaparecera. – Estou a limpar.

Lysa ficou em silêncio, aquele silêncio de quem esperava uma resposta mais elaborada. Ay continuou a limpar, agarrando no pano com mais força. Uma mão pousou ao de leve sobre a cabeça do rapaz, fazendo-o pressionar mais os lábios quando o aperto no peito aumentou.

“Não sou um bebé, não vou chorar”, mentalizou-se.

– Sabes que estou aqui para te ajudar, podes confiar em mim – disse-lhe, baixinho.

E ele sabia. Lysa estivera sempre lá, deste que se lembrava, a dar-lhe a mão, a apoiá-lo.

Ayalal fez um aceno mudo, sem parar o que fazia, e Lysa acabou por se afastar, com um suspiro, para ir ajudar noutras tarefas.

Discretamente, o pequeno ergueu o olhar, observando-a. Na semana passada, uma das raparigas mais velhas casara-se com um carpinteiro da cidade e abandonara o orfanato. Vira-a a despedir-se das outras, e escutara a Directora Drane a congratulá-la por ter conseguido encontrar um marido, como se fosse a melhor coisa do mundo. Ele não achava que fosse.

Quando acabou, foi guardar o pano junto do lava-loiça e saiu subtilmente da cozinha. Caminhou devagar pelo corredor mal iluminado até uma pequena sala onde, sobre um altar de granito, ladeando uma bengala de salgueiro, ardiam duas velas, a única iluminação. Todos os órfãos, logo pela manhã, dirigiam-se até ali e oravam à semideusa Andoletta, a Avó Corvo, protetora dos inocentes. Era uma obrigação à qual não podiam escapar. Depois disso, saiam o mais depressa possível. Ele, pelo contrário, refugiava-se ali, quando não podia estar com Lysa. Era uma solidão estranhamente reconfortante, como se estivesse realmente alguém invisível a guardá-lo.

Aninhou-se num canto e abraçou os joelhos contra o peito. A seguir, murmurou uma oração à venerável semideusa, como pedido de autorização para que o deixasse ficar até ter de ir para a sua enxerga. Não obteve qualquer resposta, e, como sempre, tomou isso como um consentimento.

Os minutos passaram devagar. Passavam sempre. Do corredor chegou-lhe o som de passos e o roçagar de uma saia que pararam junto à porta, antes de entrarem e se aproximarem. A dona deles sentou-se ao seu lado, em silêncio. Ay hesitou meia dúzia de segundos, antes de inclinar o corpo contra o braço de Lysa, quase como se tentasse ser discreto, e sem coragem para a encarar.

– Tonto – murmurou Lysa, rodeando-o com o aconchego que ele pedia. – Não te escondas de mim, por favor.

***

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