Mosteiro das Sete Formas, 28 de Calistril de 4586 AR (parte I)


O momento a sós entre mãe e filho foi interrompido por outra batida na porta. Kalëni não respondeu, continuando a cantar num sussurro para o bebé adormecido. A porta abriu-se e Guiran entrou, trazendo nas mãos uma cesta.

– Está na hora, senhora – murmurou, parando ao lado da cama. – Acredite que um dia se poderão voltar a encontrar. Sarenrae velará por vós.

A jovem não encontrou forças para responder. Ultrapassou a intensa vontade de se manter unida ao bebé e estendeu-o à sua serva pessoal. Estremeceu quando ela lhe pegou, quando deixou de sentir o peso leve nas mãos. Os braços mantiveram-se estendidos por três longos segundos, antes de se fletirem contra o peito, abraçando uma presença invisível que se esvaía.

Guiran aninhou o bebé na cesta, certificando-se que estava bem tapado e, ao lado dele, deixou uma pequena mensagem e uma bolsa de couro.

Kalëni viu-os sair, os olhos enchendo-se de lágrimas. Quando a porta se fechou, uma dor excruciante minou-lhe o peito. Dobrou-se sobre si e chorou até não ter mais lágrimas, até se sentir vazia.

*

As luzes mais fortes da cidade ainda não haviam ganhado vida, para simular o dia, na cidade subterrânea. Guiran avançou com passadas rápidas pelas ruas vazias. Um lenço ocultava-lhe o cabelo escuro e parte das feições morenas. Não queria correr o risco que algum transeunte madrugador a pudesse reconhecer.

Parou diante de um edifício cravado na pedra da montanha, como tantos outros. Era alto e austero, lembrando um misto de igreja e asilo. As portas largas de madeira encontravam-se fechadas. Olhou de um lado para o outro, certificando-se que não havia ninguém nas redondezas, antes de subir os três degraus que levavam à entrada do orfanato. Pousou a cesta no chão. Apesar do frio que se fazia sentir, o pequeno não acordara.

– Que os deuses te protejam – murmurou, num desejo pesaroso.

A seguir afastou-se, não se atrevendo a olhar para trás, não fosse o arrependimento mais forte que o dever.

Passou mais de uma hora. As luzes que iluminavam a cidade e mimetizavam o dia desabrocharam, iluminando as ruas e despertando os habitantes. Dentro da cesta, Ayalal remexeu-se e encolheu-se com o frio, sem acordar.

Em resposta ao início da manhã, uma das portas do edifício abriu-se para dentro. À entrada, uma jovem, ainda na adolescência, franziu as sobrancelhas ao deparar-se com o que a esperava. Aproximou-se cautelosamente, como se a cesta pudesse estar armadilhada, e espreitou.

– Está morto – murmurou para si, ao deparar-se com a palidez do recém-nascido. Levou-lhe uma mão ao rosto, sentindo a frieza da pele. Como que por reflexo, o pequeno soltou um espirro.

A rapariga sobressaltou-se e recolheu a mão de imediato. Inspirou fundo. Afinal, não estava morto, porém não deveria faltar muito. Apressou-se a pegar na cesta e correu para dentro. A voz ergueu-se pelo corredor, aflita, enquanto se dirigia à cozinha.

– Encontrei um bebé!

***

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