Mosteiro das Sete Formas, 22 de Lamashan de 4592 AR (parte I)


– Preciso de saber se isto tem veneno, por favor. – Ay pousou o bolo em cima da mesa, sob o olhar espantado de Yudarh.

– Queres saber se isso tem veneno? – Yudarh olhou para Lysa. – O que é que se passa aqui?

A jovem suspirou e encolheu os ombros, explicando-lhe a proveniência do bolo e o que Ayalal sentira a respeito das duas pessoas que haviam visitado o orfanato.

Yudarh escutou-a, erguendo um pouco as sobrancelhas quando ela denominou uma das visitas como “anjo”, e ficou algo pensativo ao ouvir a descrição de como a criança se comportara ao ver o homem que chegara depois.

– O que é que viste nele ao certo? Explica-me como puderes – pediu, acabando por se sentar numa das cadeiras.

Ay coçou a cabeça e insuflou as bochechas, enquanto pensava em como pôr aquilo por palavras.

– Era como… como se houvesse alguma coisa diferente nele, à volta dele. Uma coisa má, como um fantasma. Eu não conseguia ver nada, mas… – arrepiou-se. – Ela estava lá, eu não estou maluco, mestre Yu.

– Não acredito que sejas – garantiu o tiefling. Passou uma mão pelo queixo encarando a criança. – Nem me parece que estejas a inventar tudo isso, mas preferia que estivesses. Para onde é que essa mulher ia levar as crianças, Lysa?

A jovem ficou algo atrapalha pela conversa ter, de súbito, virado na sua direcção.

– Ah, bem, não sei. Nunca vi nem ouvi falar de ninguém com asas na cidade. Eram estrangeiros, definitivamente. As crianças deveriam ir com eles para fora – notou.

Yudarh desviou a atenção para a lareira, estreitando os olhos, com um desagrado óbvio espelhado no rosto.

– Mestre Yudarh, o que se passa? – Lysa começou a ficar preocupada.

– Pela descrição daquilo que o Ayalal sentiu, talvez esse homem já não esteja vivo. A possibilidade de um morto-vivo poder estar a levar cinco crianças para fora desta cidade…

– Um morto-vivo? Como assim, um morto-vivo? Ele não parecia morto… e estava com um anjo…

Face àquele comentário, Yudarh soltou um riso sarcástico baixo. Nenhum deles havia algum dia visto o meio-demónio a esboçar mais do que um sorriso leve.

– Os anjos têm mais que fazer do que ir buscar crianças a um orfanato. Aquilo era, na melhor das hipóteses, uma aasimar, um ser meio-celestial. Alguns têm, de facto, tendências para actos honrados e de bom cariz. Isso não os impede de serem tão cruéis como o pior demónio do Inferno – acrescentou. – E até poderia ser outro qualquer tipo de criatura, sob disfarce. As aparências enganam, Lysa.

A cabeça da jovem inclinou-se para a frente, os lábios comprimindo-se numa linha trémula, sob a reprimenda da última frase.

– É possível saber se são mesmo maus? – perguntou Ayalal, apoiando os braços na mesa e pondo-se em bicos de pés. – Como fazemos para trazer os outros de volta?

Yudarh fez-lhe um sinal com a mão, para que sossegasse, e ergueu-se, indo até um dos seus armários, donde trouxe um colar cujo pendente possuía a forma de uma espada de prata com a guarda raiada a ouro.

– Não falem comigo nos próximos momentos. – Poderia parecer um pedido, porém era uma ordem tácita. – Não vou conseguir ouvir-vos.

Ay acenou em concordância, de olhos presos nele, esperando que alguma coisa acontecesse.

Yudarh voltou a sentar-se, agora de costas direitas e sem se encostar. Pousou o antebraço esquerdo sobre a mesa, com o pendente na palma da mão e fechou os dedos com cuidado, ficando somente a corrente a descoberto. Inspirou fundo e expirou, focando a vista num ponto para além do tampo de madeira. A mão direita ergueu-se diante do rosto e os dedos riscaram o ar, de cima para baixo, executando de seguida um semicírculo que continuou para um movimento diagonal. Ao mesmo tempo, os lábios do meio-demónio moveram-se. Ao princípio, o rapaz pensou que o mestre nada estava a dizer, porém, por entre o crepitar da lareira, um sussurro ditava palavras que não foi capaz de compreender.

Aos poucos, um brilho leve que se escapava por entre os dedos da mão fechada de mestre Yudarh chamou-lhe a atenção. Semi-abriu a boca e os olhos brilharam, perplexo. Aquilo era magia a sério. Uma névoa esbranquiçada cresceu e espalhou-se pelos orbes de íris vermelha do tiefling, tornando-o cego para o presente. Por segundos que pareceram uma eternidade, ficou parado, mal respirando. Ayalal conseguia sentir como que um peso diferente na atmosfera que pairava em redor dele, uma energia estranha, mas apelativa.

Por fim, Yudarh piscou os olhos e a névoa desapareceu. Na mão, o brilho apagou-se.

– Saíram da cidade ontem, pela estrada principal – suspirou, o corpo descontraindo um pouco. – Não vi qualquer intenção maligna. Esperemos que assim seja.

O rosto contorceu-se num esgar de quem estava longe de se convencer disso.

***

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