Mosteiro das Sete Formas, 22 de Lamashan de 4592 AR (parte II)


Ay suspirou, apoiando o queixo sobre a mesa. Lançou um olhar conformado ao bolo, como se também ele fosse um vilão que ganhara a batalha.

– E o bolo não tem veneno – notou Yudarh, depois de o ter observado por um instante. – Podem comê-lo.

O rosto da criança contorceu-se numa careta quase repugnada. Preferia comer pão com um mês do que provar aquele “presente”.

Lysa deu um passo em frente e posicionou-se ao lado de Ayalal, pousando-lhe a mão no cabelo negro.

– Já tiraste as dúvidas todas?

O rapaz ergueu um pouco a cabeça, olhando-a. Na sua expressão havia mais do que uma questão pendente, e uma hesitação que conseguia somente enfatizá-la. Yudarh esperou, observando-o, até o pequeno ganhar coragem.

– O que é que eu sou? Porque é que vi aquele homem de forma diferente? – perguntou, baixinho. – Qual é a minha… proveniência?

Por um segundo, Lysa conteve o ar nos pulmões. A ênfase que Ay dera àquela última palavra fê-la recordar-se da mulher que o tentara levar de si. Ela usara-a numa insinuação propositada que ficara a pairar na consciência da criança. Lançou, com o olhar, um pedido de auxílio ao tiefling. O meio-demónio, por sua vez, não lhe dispensava qualquer atenção, dedicando-se a observar Ayalal. Após ponderar, levou ao rosto a mão que segurava o colar, apoiando nela o queixo.

– Tu és aquilo a que muitos chamam dhampir – disse, o tom ponderado permitindo que as palavras tomassem o seu rumo. – Um meio vampiro, provavelmente do lado paterno. Isso dá-te algumas capacidades e fragilidades. É por seres o que és que detectaste a aura de morto-vivo daquele homem, é também por isso que os teus olhos são tão sensíveis à luz do sol. Provavelmente a tua palidez também advém disso, assim como a afinidade com energia negativa, a capacidade de ver na escuridão e, talvez, algum gosto por sangue…

Ay não se mexeu. O corpo petrificara, a partir do momento em que Yudarh mencionara a palavra “vampiro”. Lysa, pelo contrário, abria e fechava a boca, sem conseguir articular nada, demasiado chocada com o despejar de informação para cima da criança. Cerrou os punhos diante da boca.

Yudarh continuou a ignorá-la, atento somente à reacção do rapaz.

– Sou um monstro. – O murmúrio escapou-se por entre os lábios de Ayalal, como constatação de algo que já suspeitava.

– Tanto como eu – acrescentou Yudarh, fazendo um gesto com a mão livre, como a enfatizar o sarcasmo. – És um monstro se quiseres sê-lo, ou se deixares que uma criatura assim se apodere do teu espírito. Fica por tua conta o que serás no futuro. Por agora és só um rapazito magricela. Não sentes vontade de beber sangue, pois não? Nem de fazeres algo mau.

Ay abanou a cabeça numa negativa lenta, enquanto levava uma mão aos lábios, estarrecido. Era então por isso que dois dos seus incisivos se alongavam anormalmente e tinham pontas mais afiadas, constatou: serviam para morder pessoas, para sugar sangue, talvez para matar…

– Mas…

– Não há “mas”. Sê aquilo que queres ser, não aquilo que a imaginação dos outros acham que és. Podes ter a certeza, isso vai magoar-te. Mas não há maior vitória que levares a tua avante e provares a todos o quão enganados estão a teu respeito. São as tuas crenças, as tuas vontades, a tua força – ditou Yudarh, apontando-lhe uma garra. – E não te esqueças que não estás sozinho. Há mais pessoas que acreditam nas tuas capacidades. Fá-lo por ti e por elas, Ayalal.

Com esforço, Lysa ultrapassou o momento de torpor. Levou os joelhos ao chão e, vacilante, ergueu a mão, tocando no rosto frio da criança.

– Tu não és um monstro, Ay. Nunca vais ser. És um menino bom. Senti isso mal te encontrei, tão silencioso, tão só… – murmurou, quase falando consigo mesma ao recordar-se. – Tão… importante para mim.

Duas lágrimas escaparam-se-lhe, escorrendo de cada lado do rosto. Ay desviou o olhar para ela e à sua expressão estarrecida juntou-se um sentimento profundo de culpa ao vê-la chorar.

Yudarh desviou o olhar e retirou a mão de sob o queixo, para observar o colar que ainda segurava. Deixou um dedo deslizar pelo símbolo da espada.

– A Lysa está a chorar porque te ama – murmurou. – Porque está feliz de te ter consigo. Não comeces a culpar-te do que não tens culpa. A culpa é capaz de destruir a alma.

Por entre as lágrimas, Lysa sorriu e esticou-se para lhe dar um beijo na fronte.

– É o que o mestre Yudarh diz. És demasiado importante para mim, Ay. Se pudesse ser mãe de alguém, só quereria ser tua mãe. – Passou a mão por um dos lados do rosto, limpando-o. – E eu não diria isso se fosses um monstro.

Um apertado nó na garganta impediu o rapaz de dizer fosse o que fosse. Devagar, estendeu ambos os braços para o pescoço de Lysa e abraçou-a em silêncio.

Ayalal,
amavelmente desenhado pela Aergia

***

Sem comentários:

Enviar um comentário