Mosteiro das Sete Formas, 02 de Pharast de 4586 AR (parte I)


Sentada na cozinha, dobrada sobre si, de cotovelos apoiados nos joelhos, Lysa tentava conter a frustração, enquanto via Ohlara, a ama-da-leite, tentar dar de comer a Ayalal. Haviam passado dois dias inteiros e, por alguma razão, ele recusava-se a engolir o leite.

– Talvez seja alguma enfermidade. – Ohlara não se fartava de repetir aquilo, deixando-a pelos cabelos. – O melhor seria levá-lo a um curandeiro, tentar perceber. Pode haver um nó dentro dele… ou os deuses preferem que ele não viva.

A adolescente fez uma careta que lhe contorceu o rosto já de si algo contorcido de um dos lados. Quando era pequena, antes de entrar para o orfanato, uma queimadura carcomera-lhe a pele da bochecha até à sobrancelha e quase a cegara.

– Talvez seja melhor. Fica com ele um bocadinho, por favor. Vou falar com senhora Drane – pediu.

*

Saiu com passadas apressadas, dirigindo-se a uma pequena casa a duas ruas de distância. Ao aproximar-se, estugou o passo e franziu um pouco as sobrancelhas, descontente com o que viu. Seis pessoas esperavam à porta da curandeira. Uma delas segurava um pano em redor da mão, ensopado em sangue que pingava no chão; outra, de pele macilenta, tossia, e o ruído do seu peito era um aviso que a queria manter à distância; havia ainda uma mulher, com um bebé de colo, de desespero espelhado no olhar.

– O que é que vamos fazer, Ay? – murmurou ao pequeno, pensando para si. Ayalal soltou um resmungo opinativo baixo. Não voltara a chorar, depois daquela primeira vez, nem por fome, nem para que lhe mudasse os cueiros, nada. Talvez tivesse mesmo uma doença. Ele esticou uma mão, parecendo querer chegar-lhe ao queixo. Era incrível como ainda tinha forças para aquilo. Se ela estivesse dois dias inteiros sem comer, nem se mexia. – Tu és forte, não és? Qual enfermidade, qual quê…

Baixou o rosto, deixando-o tocar-lhe. Ao senti-lo mexer-lhe na cicatriz, lembrou-se de alguém que talvez os pudesse ajudar.

Deu meia volta, fazendo Ay soltar outro resmungo e recolher o braço. Afastou-se da parte mais populosa da cidade, penetrando em ruas menos claras, onde a iluminação carecia. As casas também eram menos, algumas delas completamente vazias, abandonadas por quem não fora capaz de viver tanto tempo sob as montanhas. Enveredou por um lance de escadas escavadas na própria pedra, de degraus cuja altura roubava o fôlego, e entrou num túnel que dava acesso a uma zona mais sombria. As tochas eternas, presas às paredes, espaçavam-se em intervalos demasiado amplos, que criavam sombras de movimentos irregulares. Lembravam-lhe criaturas, à espera para a atacar. Engoliu em seco e avançou, agarrando melhor o bebé.

Mais adiante o caminho transformava-se numa encruzilhada. O túnel do seu lado esquerdo levaria à superfície, porém era uma rota meio-esquecida que provavelmente só os monges tomavam – fora por ali que ela própria chegara à cidade; em frente ficava o seu destino, seguindo o mesmo padrão de luz e sombras; porém, do seu lado direito, abria-se um poço de escuridão. Arrepiou-se. No orfanato contavam-se histórias de pessoas que haviam sido arrastadas por garras sem dono para passagens como aquela, que por vezes se escutava o sussurro dos mortos na corrente de ar. Queria acreditar que era tudo aldrabices que contavam às crianças. Inclusive, patrulhas regulares examinavam as zonas não iluminadas da cidade para se certificarem de que nenhuma criatura perigosa as tomava como lar. E não havia qualquer registo oficial de desaparecimentos ou ataques.

Inspirou fundo, conteve a respiração, e correu para o outro lado. Nada a apanhou no caminho, nenhuma mão de garras afiadas saída do negrume. Suspirou, um pouco aliviada. Sentia-se, ao mesmo tempo, ridícula por, com aquela idade, ainda dar atenção às histórias tolas que corriam entre as crianças.

Continuou caminho até ao fim do túnel, onde a pedra formava uma casa de porta baixa. Apesar de ao lado desta haver uma janela, não se via qualquer luz vinda do interior. Lysa hesitou um momento, antes de bater. Não obteve qualquer resposta. Voltou a bater, com mais força. Nada.

Praguejou, frustrada. Podia esperar um pouco, mas não sabia quando é que ele voltaria. Ou se simplesmente estava lá dentro e não queria abrir a porta. Regressaria mais tarde.

Deu meia volta e, de súbito, percebeu que deixara de ver o túnel à sua frente. Um vulto negro bloqueara-lhe o caminho. Saltou para trás, apertando Ayalal contra si com demasiada força. O bebé soltou um guincho baixo, com a brusquidão. Por um momento, pensou que fosse um ser da escuridão que a viesse matar. Ergueu o olhar, espreitando um rosto avermelhado de homem. O seu cabelo era tão branco como a neve, mas o que mais chamava a atenção eram os dois chifres negros que irrompiam da testa e arqueavam para trás. Ele encarava-a, com dois orbes de um vermelho intimidante. Bateu com um casco no chão, fazendo-a estremecer.

***

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