Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4590 AR (parte IV)


À medida que se aproximavam da saída do túnel, a corrente de ar tornava-se mais forte. O fogo das tochas encantadas vacilava, sem nunca se apagar. Uma tocha normal aguentar-se-ia acesa pouco mais que um segundo.

Yudarh liderava a marcha, apoiado no bastão que sempre o acompanhava, com a extremidade inferior, calçada a metal, marcando o ritmo. O caminho transformou-se numa subida íngreme, obrigando Ayalal e Lysa a apoiar as mãos na pedra para subirem, ao contrário do meio-demónio cujos cascos pareciam habituados a tais trilhos. Sendo uma passagem pouco frequentada, ninguém se dera ao trabalho de construir escadas para auxiliar na tarefa.

Uma luz clara, que não a das tochas, começou a revelar-se, espreitando-os de uma curva que os impedia de ver mais além. Mal a ultrapassaram, Ayalal encolheu-se com um gemido de dor e, por instinto, levou o antebraço até aos olhos. Era como se a luz tivesse tomado a forma de várias agulhas que o atacaram de surpresa.

Yudarh olhou para trás.

– A luz poderá magoar-te, mas se queres mesmo ver o exterior desta montanha, aguentarás essa dor.

Desabituada da luminosidade exterior, Lysa semicerrara os olhos, 

– Far-lhe-á mal, mestre? – quis saber, preocupada.

– Em princípio, uma dor de cabeça. – O tiefling recomeçou a caminhada. – Não olhes directamente para o Sol, criança.

Ay fez um aceno rápido, ainda com o braço sobre os olhos. De um momento para o outro, aquela inesperada e súbita dor semeara-lhe uma pontada de medo no coração. Nunca imaginara que a luz do dia o fosse magoar. Ficou parado, no sítio onde estava, enquanto os passos de Yudarh e Lysa seguiam caminho. Inspirou fundo e obrigou uma perna a içar-se para se apoiar na pedra. Segurou-se com a mão livre e continuou a avançar, devagar, hesitante, em direcção à enorme boca de luz, diante de si.

Andara poucos metros quando, sem aviso, um pé bateu num pedregulho e o rapaz caiu para a frente, meio desamparando. Sobressaltado, e para não se magoar, levou ambas as mãos ao chão e abriu os olhos. Luz. Tudo parecia feito de luz que cegava e apagava o resto do mundo. Voltou a fechar as pálpebras, com toda a força, porém a claridade parecia ter ficado presa lá dentro.

– Ay! – A palavra foi levada pelo vento forte. A mão preocupada de Lysa tocou-lhe nas costas, enquanto a outra o ajudou a levantar-se. – Mestre, ele não consegue abrir os olhos…

– Consegue. Aos poucos – respondeu o meio-demónio. A voz dele não estava longe.

Ayalal nada disse, porém os punhos das mãos estavam cerrados. Uma parte de si incitava-o a correr de volta ao túnel, aos tropeções. Outra queria ver, abrir os olhos e absorver o que haveria ali de novo, as imagens de que Lysa lhe contava histórias. Esperou, os instantes decorrendo devagar. Ao longe, escutou um som que nunca antes ouvira, perfurando o vento, parecendo chamá-lo.

– O que foi aquilo? – perguntou, ainda sem se atrever a abrir os olhos. Havia já tanta luz com eles fechados, o que aconteceria se os abrisse?

– Um dos falcões que habita as montanhas veio cumprimentar-te – disse Yudarh.

Ficou mais curioso. O que seria um falcão e porque viria cumprimentá-lo?

Aos poucos, a pressão das pálpebras começou a aliviar-se. Duas pequenas frestas revelaram uma nesga violeta da sua íris. Viu vultos e borrões do que o rodeava, porém a dor continuava lá, desafiando-o. Tentou abrir mais, todavia as lágrimas surgiram, para lhe esborratar ainda mais a visão, numa vã tentativa de lhe aplacar o sofrimento.

Quando estava quase a desistir daquele esforço, um dos vultos aproximou-se e tocou-lhe. O corpo da criança foi percorrido por um calafrio, provocado por uma onda de energia e, de súbito, a intensidade da luz diminuiu. A medo, não fosse aquilo uma partida, Ayalal acabou de abrir os olhos e… arregalou-os.

Diante de si, o vasto horizonte revelava os picos mais baixos das montanhas íngremes onde vivia; abaixo deles, pequenas manchas verdes pintalgavam a planície; e, muito mais além, uma vastidão brilhante abarcava tudo o resto – era O Mar Interior.

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