Mosteiro das Sete Formas, 02 de Pharast de 4586 AR (parte II)


– Mestre Yudarh…

– Quantas vezes te disse para não vires aqui? – O seu tom era tão duro quanto o olhar. Numa mão de dedos que terminavam em garras, segurava um bordão cuja superfície se revestia de estranhos símbolos negros. Andava sempre com ele e Lysa desconfiava de que fosse mágico. Na outra mão trazia um saco fechado.

– Eu sei… mas precisava mesmo da sua ajuda – notou a adolescente, baixando o olhar para Ayalal. – Precisava que me ajudasse a cuidar deste bebé. Não sei bem o que lhe fazer… ele não come, Mestre.

Ele respirou fundo. Atrás de Lysa, o trinco da porta rodou sozinho, destrancando-a. Yudarh passou pela rapariga e abriu a porta, deixando-a como estava ao avançar para o interior. Lysa apressou-se a seguir a dica, antes que ele mudasse de ideias, e entrou também, fechando-a atrás de si. À medida que ele avançava por um corredor estreito, as candeias penduradas no tecto acendiam-se, iluminando-lhes a passagem.

Não conhecia bem a casa, mas já fora lá vezes suficientes para saber que tudo poderia ser potencialmente mágico. E perigoso, segundo as palavras do Mestre Yudarh. Passaram por três portas fechadas, e acabaram por desembocar no que se revelava um misto de quarto, sala de estar e cozinha. Mal ele pousou um casco no interior do compartimento, a lareira diante deles crepitou e as chamas irromperam dos toros de madeira. Yudarh atirou o saco para um canto mais escuro e encostou o bordão à parede, para despir a capa preta que trazia sobre ombros.

Lysa aguardou em silêncio, lançando uma mirada às estantes posicionadas de um dos lados, repletas de tomos antigos e frascos misteriosos em cuja superfície a luz das chamas tocava, produzindo reflexos de outras cores. Sorriu um pouco. Estava tudo igual àquilo de que se lembrava, quando vivera ali, depois de Yudarh a ter encontrado nas montanhas.

– Eu não sou curandeiro, sabias?

A pergunta chamou-lhe a atenção, levando-a a encará-lo. Uma cauda vermelha oscilava atrás das costas dele. A grande maioria das pessoas da cidade consideravam-no um demónio, era-lhes indiferente que nunca tivesse prejudicado ninguém, que se limitasse a viver num túnel isolado, sozinho com ele mesmo, longe dos problemas. Só a sua própria existência era suficiente para lhe desejarem a morte. Lysa acreditava que era essa a razão que levava Yudarh a não a querer ali, para que não a vissem associada a uma criatura que era, na verdade, filho de demónios.

– Mas é mais sábio que muitos – notou, aproximando-se um pouco. – E mais… compreensivo.

Ele fungou, revirando os olhos.

– O bebé, dizes que não come – notou, indo directo ao assunto. – Donde veio?

– Foi deixado à porta do orfanato. Encontrei-o há dois dias, de manhãzinha – explicou. – Não sei se tem alguma doença, mas está bastante pálido.

Yudarh tomou-lho dos braços, num movimento rápido que a fez sobressaltar-se, receosa que Ayalal se magoasse. Caminhou com ele até junto das chamas, observando-o com atenção. O rosto do bebé contorceu-se um pouco, mantendo os olhos firmemente fechados, num esforço que Lysa provavelmente não repara. Yudarh voltou a afastar-se da luz mais forte, notando a descontração no rosto do bebé. Deitou-o em cima da mesa, desenrolando-o da manta que o protegia do frio.

– Ele tem alguma marca no corpo? – lançou uma mirada a Lysa.

– Não, só essa palidez. Que tenha notado.

– Hm. – Afastou-se dele e foi até uma das prateleiras com frascos. Mirou-os por um pouco e tirou um deles, desarrolhando-o no caminho de regresso. Verteu uma só gota sobre o dedo indicador.

– O que é isso? – murmurou Lysa.

Não obteve resposta. Yudarh pegou no braço de Ayalal, arregaçando-lhe a manga da roupa ruçada que usava, e tocou-lhe com o dedo na pele.

De súbito, um grito lancinante de dor soltou-se da garganta do recém-nascido. Lysa agiu por instinto, arrancando o bebé na mesa e abraçando-o contra si, enquanto lançava um olhar chocado ao meio-demónio.

Yudarh suspirou e encolheu os ombros, voltando a arrolhar o frasco.

– É doloroso, mas essa quantidade não o irá matar. E foi bom ter sido eu a testar de propósito, do que ele levar com isto em cima sem querer – notou, voltando a pôr o frasco junto dos outros. – O que está aqui dentro não deveria ser nada de mais… para um bebé normal. É água benta.

***

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