Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4590 AR (parte II)


Encostou a cabeça ao peito de Lysa e suspirou, baixinho. Agora, sentia-se muito mais seguro, ela protegê-lo-ia dos monstros maus. Ficou em silêncio por um instante e, como ela não falava, ergueu o olhar.

– Como é que posso proteger-te do teu monstro?

Ela sorriu-lhe com carinho. Havia meninos no orfanato que tinham um irmão ou uma irmã a viver com eles. Lysa era isso para ele, uma pessoa importante, valiosa.

– Já proteges, Ayalal.

O pequeno premiu os lábios num trejeito torto e pouco convencido.

– Foi o monstro que te fez isso? – murmurou, esticando a mão e tocando-lhe com leveza na cicatriz do rosto, os dedos deslizando pelas rugosidades que a queimadura deixara.

Lysa desviou o olhar, a expressão fechando-se.

– Foi – murmurou, recordando-se do seu “monstro”. Era uma sombra que pairava atrás de si, perseguindo-a. Agarrou em Ayalal só com uma mão, e levou a outra à pequena mão dele, segurando-a contra o seu rosto. – Era o meu pai. Mas agora já está longe, fugi dele. É só que muitas coisas do passado são difíceis de esquecer.

O lábio inferior de Ayalal dobrou-se um pouco para fora, fazendo beicinho.

– Os pais são maus…

– Há muitos que não são – notou, dando-lhe um beijo terno na palma da mão. – Há pessoas más e pessoas boas, e pessoas que são ambas as coisas, ou não são nenhuma. O teu pode não ser mau. Nem a tua mãe. Talvez… lhes tenha acontecido algo e pensassem que aqui estavas melhor, comigo. Talvez achem que és capaz de me proteger do monstro mau.

Ayalal ficou pensativo por um momento e depois acenou, mais confiante.

– Sim, foi isso. Vou pedir ao mestre Yu para me ensinar coisas para te proteger – determinou.

Lysa riu-se ao ouvi-lo dizer aquilo. Yudarh ficara quase de cabelo em pé, da primeira vez em que um Ayalal gatinhante lhe chamara “mest’Yu”. Já não o visitavam regularmente, principalmente depois de ter conseguido desabituar Ayalal do leite com sangue, algo que fora mais fácil do que realmente imaginara. Apesar de tudo, continuava a ser um rapazito com pouco apetite e, por isso, magrito.

– Então, e se depois do amanhecer, lhe formos fazer uma visita? O que achas?

– Sim! – disse, sorrindo.

– Mas antes… – Lysa tirou-o do seu colo com cuidado e levantou-se do banco. Ay seguiu-a com o olhar, intrigado.

– O que foi?

A jovem foi até um armário donde voltou com um saquinho de pano, preso com um cordel. Sentou-se ao lado dele e estendeu-lho.

– Feliz aniversário, Ay – desejou.

Os olhos da criança arredondaram-se, enquanto encarava o embrulho tosco.

– É hoje?

– Hm-hm. E este é o teu presente. É pouco, mas espero que gostes – disse, vendo-o pegar no cuidado no embrulho.

Ayalal labutou um pouco com o nó apertado, mordendo o interior da bochecha. Quando conseguiu, por fim, abriu o saco sobre o colo, revelando três bolinhos que, juntos, cabiam na palma da mão de um adulto. Os seus olhos brilharam de felicidade – doces eram uma luxúria que não entrava no orfanato.

– Prova – incitou, Lysa. – Ouvi dizer que são muito bons.

Ele fez um aceno e pegou num. Hesitou por um momento, antes de o estender na direcção dela.

– Prova também – ofereceu.

– Não posso, são para ti…

Ele sorriu de forma algo traquina.

– Se são meus, dou-te um. Prova, vá lá…

Lysa acabou por aceitar, pois sabia que, se não o fizesse, deixá-lo-ia triste. Ayalal pegou num segundo bolo e deu-lhe uma dentada pequena, saboreando devagar, sem nada mais dizer. Quando acabou de comê-lo, pousou o terceiro na mesa e, sem aviso, abraçou-se à cintura dela, escondendo o rosto na sua barriga.

– Obrigado – A palavra abafada chegou até si com dificuldade. Aos poucos, a camisa de dormir humedeceu no local onde a criança encostava o rosto. – Obrigado.

E Lysa sabia que era um agradecimento que ia muito além dos três bolinhos que lhe oferecera. Ayalal não imaginava o quanto aquela gratidão era mútua.

***

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