Mosteiro das Sete Formas, 27 de Calistril de 4590 AR (parte I) (quatro anos depois)


Estremeceu e, de súbito, abriu os olhos. A escuridão reinava no quarto. Contudo, não era isso que o impedia de ver. Deitado na sua enxerga, sobre o chão, Ayalal observou as restantes crianças. As respirações eram leves, monótonas. Sentou-se devagar, trémulo, agarrado ao cobertor. Ao todo, contando com ele, eram trinta e duas, deitadas a pouco mais que um braço de distância e, excepto ele, todas dormiam.

Tentou não fazer barulho, enquanto se levantava. Levou consigo o cobertor, sobre as costas, como uma capa que arrastava pelo chão, e saiu pela porta que fora deixada encostada. Caminhou só com as peúgas nos pés, parando diante da porta seguinte, por alguns segundos. Lysa, junto com as restantes senhoras que cuidavam deles, dormiam naquele quarto. Mordeu o lábio inferior e abanou a cabeça, continuando caminho até às escadas que levavam ao piso inferior. Era demasiado crescido para lhe pedir para dormir com ela. Demasiado crescido para ter medo dos pesadelos que não o deixavam descansar. Não queria dar outra razão a certas crianças para gozarem consigo.

Espreitou a cozinha, certificando-se de que estava vazia, antes de entrar para se sentar junto à lareira. Uma chama pequena oscilava entre os toros queimados, lutando para continuar acesa. Enrolou-se no cobertor e deitou-se no chão, encolhido, só com o rosto de fora, observando o esmorecer do fogo. Por vezes desaparecia por completo, deixando somente as brasas no seu lugar, só para renascer, um momento depois. Fechou os olhos, sem conseguir dormir. Lá fora, o vento que desembocava na cidade, vindo dos vários túneis, abanava as portadas da janela, entrando pelas frinchas. Assustava-o. Era uma espécie de monstro invisível que, se conseguisse entrar completamente, o devoraria. Estremeceu, encolhendo-se mais.

Não soube quanto tempo ficou assim. Lá fora o vento serenou. O monstro cansara-se e partira. Fora da cozinha, a madeira das escadas estalou. Ayalal abriu os olhos e apressou-se a gatinhar para debaixo da mesa da cozinha, arrastando o cobertor atrás de si. Encolheu-se, abraçado aos joelhos, enquanto a luz de uma vela iluminava timidamente a entrada. Viu dois pés a espreitarem de sob uma camisa de dormir de lã e avançarem pelo chão de pedra, até junto da mesa. A pessoa sentou-se no banco corrido, ficando em silêncio, à espera.

Ay esperou, de coração a bater muito depressa, até ganhar coragem e espreitar pelo espaço entre o banco e o tampo da mesa.

– Como é que sabias que eu estava aqui? – perguntou, baixinho.

Lysa sorriu-lhe com carinho e esticou a mão para lhe fazer uma festa no cabelo negro.

– Foi uma fada que me contou.

– Nunca vi nenhuma fada aqui no orfanato…

– Ah… bem… na verdade tive um sonho mau – confessou Lysa.

Ayalal franziu as sobrancelhas e trepou para cima do banco, sentando-se ao lado da amiga.

– Dói? – perguntou, com uma preocupação sincera. – O monstro fez-te mal?

Ela hesitou um pouco.

– Foi só um sonho mau. O monstro não existe.

– Não existe mesmo? – perguntou ele, desconfiado. – Eu acho que existe. Senão, não te faria mal quando dormes.

Lysa ficou sem saber muito bem o que lhe responder.

– Bem, talvez exista. Temos de os derrotar, então. Como era o teu monstro, Ay? – Passou-lhe um braço em redor dos ombros, chegando-o para si. Observou-o, vendo não tanto medo, mas mais tristeza.

– Eram muitos – murmurou. – Não conseguimos derrotá-los. Eu estava num quarto escuro, eles vieram pelo chão e agarraram-me. Começaram a morder-me e havia sangue… eu gritava, mas não havia som. Puxavam-me o cabelo, queriam tirar-me a cabeça… – Os olhos arredondaram-se, fitando as mãos.

A jovem ofereceu-lhe um beijo no cabelo negro, deixando-o terminar. Só depois colocou a questão que começara a pairar com a descrição do sonho.

– Ay, os outros meninos voltaram a bater-te?

– Não.

A resposta fora firme e rápida. Demasiado, na verdade. As mãos pequenas apertavam-se, tornando-se mais pálidas do que já eram. Lysa pegou nele com cuidado e sentou-o no seu colo, de lado, para o abraçar contra o peito. Todas as crianças do orfanato tinham uma história desagradável para contar. Apesar de algumas, como Ayalal, não terem realmente noção dessa história, outras, pelo contrário, tinham sido moldadas por ela. E, em algumas, esse molde trouxera à tona o prazer de magoar. Ayalal guardava essas feridas para si. Falava-lhe só dos monstros que o atacavam nos pesadelos, sem perceber o que reflectiam.

***

Sem comentários:

Enviar um comentário